sábado, agosto 02, 2008

O Barqueiro e o barcante.

Os dez anos foram os piores.
Creio que os fazem assim a fim de desencorajar uma revoltosa volta. Dez anos, na companhia daquele terrível demônio, me foram mais que suficientes para abandonar qualquer desejo de vê-lo uma vez mais. Na verdade, à primeira vista abandonei qualquer desejo de liberdade.

“Caronte” disseram-me que deveria chamá-lo e Caronte o chamei. Paguei-lhe com uma rica moeda e seu penitente sorriso foi-me dado pela primeira vez. Meu primeiro castigo, meu primeiro pesar, minha primeira dor. Seu raquítico e mesquinho sorriso.
Parecia satisfeito e pleno. Não só com seu pagamento - não isso era o menor - mas com meu martírio.

Deixem-me, por favor, ser mais claro.
Morri.
De minha vida-de-vivo pouco trago em lembranças. Apenas sei que fui luxurioso, avaro, e sanguinolentamente irado. Fui desregradamente vivo e merecidamente punido, dirão aqueles que se salvaram. Mas eles não sabem da penitencia desumana de passar os primeiros dez anos na barca.
Dez miseráveis anos. Dez, contados segundo-a-segundo a partir do primeiro sorriso.
E, meus aflitos e amados irmãos, eu vos asseguro: nunca parou de sorrir, o maldito.

Era feio e belo ao mesmo tempo. Enigmático. Andrógino, de feições finas e magras. Sem pêlos, pálido e esverdeado. Olhos fundos e sem cor. Pele suada, sempre úmida, como a de um sapo.
Suas roupas, ironicamente, me lembravam a dos padres franciscanos. Marrom, de tecido rude e feio. Sujo.
Seus dentes eram amarelos e sua boca, ressecada e encurvada, ria sem mostrar os dentes – mostrar os dentes era para os momentos especiais, para ele, e era sempre pior -, mas sempre numa respiração pesada e ruidosa. Como um eterno asmático feliz.

Feliz! Era isso que ele era. Feliz.
Nunca em minha vida havia eu presenciado tamanha demonstração de contentamento e felicidade. Real felicidade. E isso tornava tudo pior. Apenas me afligia e me dilacerava a alma.

Alma? Há alma na barca? Há alma que resista diante da vista do barqueiro? Diante de sua sombra? Há alma que possa sobreviver ao percurso do rio? Não. Aqui não há alma. Aqui há qualquer coisa além.
Porque não é possível que o humano Fio Divino seja mantido aqui ou na barca.

Alma não. Aqui resta só o corpo. Só a força do corpo, que, sem alma, é muito mais forte. Muito além do homem.
O Divino que conheci, que pude ser foi esse Ser sem alma.
De corpo e corpo eu te digo: Não.
Não renunciaria a esse conhecimento.
Mas apenas a ele me apego. E dele apenas faço minha recompensa.
Mas ela não me paga aqueles dez anos contados-a-dedo. Não me paga nem o primeiro sorriso. Nem o primeiro calafrio
Talvez tenha sido melhor não ter sabido de nada. Abandonar.
Talvez...

Lembro-me, também, que ao longo do rio fui procurando pelo animal canino de três cabeças. Isso foi no quinto ano. Antes disso eu ia olhando a água escura e profunda do Aqueronte. E uma vez – no quinto dia do terceiro ano – cedi a tentação de tocar a água, enfiar a minha mão nela. Mas, um pavoroso peixe surgiu e quase arrancou minha mão.
O maldito deliciou-se numa tossida e babada protogargalhada. Odiei-me naquele momento e imaginei como seria atirar-me ao rio, ao peixe, e terminar meu tormento.
Mas não. Não. Ele adoraria. Riria como nunca. E isso seria o pior.

Fiquei a observar as águas ainda por mais dois anos. Notei que o peixe nos acompanhava. Às vezes era possível ver suas verdes escamas brilhando sob a água.
No quinto ano, como dizia, abandonei o peixe para preocupar-me com algo mais claro, mais belo, algo que fosse encher-me de terror e reverencia. Algo que valesse ver.
Cérbero, o poderoso cão infernal de três cabeças.

E eu mantinha os olhos abertos por dias sem piscar. Apenas para não perder o prazer de ver, pela primeira vez seu majestoso corpo.
E a busca e a espera e a apreensão quase me faziam esquecer a presença raquítica e o hálito gelado do barqueiro, que não parava de sorrir.

E foram mais três anos de espera. Até o terceiro sorriso-com-dentes do barqueiro.
E foi a primeira vez que ouvi sua voz.
E era seca e corroída. Corrosivamente direta, como se viesse para a alma, mas como só encontrava carne e mais carne então, cortava e sangrava tudo que podia.
E ele disse:
- Está procurando pelo cão?

Fiquei em choque. Paralisado. Tremia e morria a cada segundo. Escutar aquela voz. Aquela voz maldita, escutar aquilo foi meu castigo maior.
Não respondi. Depois de seis dias pude balançar a cabeça na esperança de que ele não falasse mais. Mas ele riu e continuou.
- Não há cão. Não há cão de três cabeças. Não há nem portão nem diabo. Só há inferno.

Tremi, mastiguei a língua, tentei arrancar as orelhas e os cabelos e ele ria, Ria e gritava e se batia.
E foi pavorosamente lento e doloroso o resto do tempo que passei na barca.

Ah, mas foi o deleite e a paz quando desci.
E ninguém mais saberá o prazer que é livrar-se das frias circundancias do barqueiro.
Era feia, fria e sinistra a terra e havia escuridão e lágrimas, não me entendam mal.
Mas era melhor que o céu em si o prazer de livração.
Era e É o terror e a dor, aqui. Mas nada pior que lá.
E foi vitória para minhas derrotas quando vi os olhos descoloridos do barqueiro ficando vagos e perdendo seu foco. Como alguém que perde algo muito amado e percebe que não o verá jamais.
E eu venci.

E, agora posso perceber, que esses primeiros dez anos de travessia não foram para me impedir de voltar, mas para fazer-me amar e cuidar de minha terra.
Voltar a barca seria o inferno real.
Aqui sim.

Feliz e calmo tormento.


Tito de Andréa

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