quarta-feira, setembro 27, 2006

Sim

[de alguma forma à Clarice Lispector.

Ainda preciso reafirmar? Se toda minha existência foi uma eterna afirmação de uma negativa inenarrável. Ainda preciso reafirmar? Dizer e redizer a todo o momento que amei e que no meu amor encontrei algo que não tinha? E nem tinha vontade de encontrar. Preciso reafirmar? Preciso contar os dias um a um, para poder dar a quem me pede uma lógica verdade, se para mim, não há verdade alguma? Se eu sei que não posso sentir, que não posso mais andar? Que me hei de fazer?
Acordava toda manhã com vontade de viver. Isso me foi dado logo quando nasci: a vontade de arrancar o último fino átomo de luz de todo olhar. Amei. Amei a todo instante tudo que pude amar. E com esse leve amor eu ganhei um peso que não poderia sustentar, mas ainda assim sustentei. Não lhe parece impossível?
Por fim decidi então abandonar a introdução da vida e decidir viver, e não lembro de que forma. Mas de alguma forma algo me aconteceu e me permiti a saída. E saí.
Os fatos vão-me acontecendo e eu não posso colocá-los em uma simples sucessão de palavras, não me cabe; apenas andar me cabe. Os fatos vão acontecendo e eu vou passando por eles um a um como se não fossem meus. Vivi toda a minha vida como se fosse de outrem, e isso me foi bom. Nunca precisei sentir o peso da vida, pois para mim, a vida não era minha, então que o outro – meu outro imaginário donatário – cuidasse de sua vida, que para mim: ser apenas o zelador me bastava.
Acordava todas as manhãs sabendo que tinha de tomar conta de uma vida que não era minha, isso me foi bastante por muito tempo, diria até anos, foi-me excelente.
Acordo toda manhã com fome de ar, sede de terra, e me fartava com a lama. Sujava-me de vida como uma criança chupando uma manga madura; e a vida pinga pelos cantos da minha boca. A vida pinga de mim como uma ferida. É isso que é. A vida é uma ferida em mim, ferida que tentei esconder atrás de um véu. Abafei a ferida viva que pulsava e ela morreu. A vida morreu e eu pude voltar a viver.
E essa pré-vida viva que chamo de introdução acabou, e eu precisei sair. Saí então de meu casulo. Criei a idéia de que vivia em um casulo, mas nem ao menos sabia algo sobre borboletas. Mas ainda assim, estava – dentro de minha cabeça, e por fim estava mesmo – em um casulo. Então dentro de meu confortável e sólido casulo eu vivi de maneira igualmente confortável e sólida, até que decidi sair.
Saí. Saí e mesmo sem saber algo que me deveria ser importantíssimo, saí. Não sabia se precisaria de tempo para ver se tinha olhos, se tinha asas completas, se meu sangue estava circulando. Saí sem me preocupar; e o que é ainda pior. Sem ao menos saber que deveria me preocupar. Saí.

Saí.
Saí e tive como primeiro contato humano o sol. Não o semi-sol ao qual já estava acostumado, não o semi-sol que através do meu casulo eu via e amava, mas o sol, que em si encerra um inferno amarelo. Poderia chamar esse sol de pai, de Deus, poderia chamá-lo de carrasco. Tomo por escolha chama-lo de sol. Fiquei fraco.
Voltei? Não sei, será que voltei? Será que a partir de minha primeira ilusão perdida, eu me encerrei em um novo casulo? Isso é possível, se é possível não sei, mas acho que não. Continuei.
Como poderia voltar? Como não voltar, talvez, alguém que encontre essa garrafa que abandono no mar me compreenda, e talvez, daqui a mil anos eu encontre uma garrafa de volta, dizendo-me que deva voltar que havia uma saída, que havia modo simples e honrado de olhar para trás e me encerrar em um casulo ainda mais confortável e sólido. Mas eu sei que assim que essa nova garrafa-salvadora chegar, terei encerrado essas opções num fundo de um poço sem volta. E nem ao menos estarei em tal poço para salva-las. Sei que terei (in)conscientemente tapado toda rota de fuga com tijolos e muito cimento. Não há saída para mim. Então ao menos posso imaginar que em um poço fundo e lamacento estão as minhas saídas, isso me será o bastante? Não.
Saí. Voltar teria sido covarde. E covarde – ao menos covarde – não fui. Prossegui em uma linha direta e simpática rumo a um conhecido meio que sem conhecê-lo. Parti.
As luzes de uma cidade que não me era estranha embalaram meus sonhos por muito tempo. As luzes da cidade impediam que qualquer estrela de mim se aproximasse, e é isso, que chamo amizade. É isso que eu chamo salvação. Nunca precisei olhar para o céu.
Imagino que alguém lerá essa carta, que deixo nessa garrafa e sentir-se-á contente por saber, que também não olha para o céu. E ainda mais contente por saber que isso é ainda mais certo. Sentir-se-á feliz, e saberá que todos os sonhadores que lhe agarraram o queixo e lhe mostraram estrelas estavam errados. Pega essa carta e faz dela sua salvação. Toma dela e faz dela sua espada. Pois os que olham estrelas e pensam em flores são mortos que ainda não viram a Deus. E se, todos estamos mortos. Que me importa?
Graças a minhas luzes de minha amada e protetora cidade fui salvo.
Salvo.
Mas era manhã, longe de minhas irmãs que me apareceu então a morte.
Estar morto é como amar a vida. Só os que estão mortos podem amar algo, viver implica diretamente em um egoísmo extremo que impede a qualquer um de amar. Amar a si não é amor. Amar é apenas um leve e silencioso ódio a si mesmo, impossibilitado de me amar. Amei a ela.
E sem querer entregar-me; acabo por me entregar. Comi a vida com as mãos, e ela me retribuiu. Comeu-me com todos os dentes que pode, e eram tantos.

Saí.
Mas sair não me bastou. Nunca nada me basta. Nem luz, nem não luz, nem frio nem não frio, nem vida nem morte. Todo o amor que tive de agüentar. Odeio-a por isso.

Ela? Ela era alguém pequeno e frágil. Eu poderia esmagá-la, matá-la. Deveria. Mas não há nada pior que o sentimento de dever fazer algo. Não há nada pior que um ódio contido atrás de todo um amor vivo. A vida que escondi sob o véu insistiu-me em voltara viver. E as dores desse novo parto eram tão grandiosas que deveria eu, não ela, ter morrido. Mas nós dois vivemos, e eu sabia tanto que um dos dois deveria morrer: que escolhi a ela. Apenas por medo.
Ela? Ela nem sabe o que é a vida. Ela viveu todos os anos de sua vida como se fosse vida e não posso perdoá-la por isso. Pois a vida deveria ser vivida como se fosse uma eterna e nova morte. Assim vivendo-se morre aos poucos e se encaminha à cova que foi-nos predestinada. Mas ela não. Ela tinha de fazer o contrário. Viveu como viva e se encaminhou para uma nova eternidade dela. Uma nova eternidade Ela. Não posso perdoá-la. Não quero. Mas vou.

Não voltei atrás. Nem em um minuto a matei. E tampouco consegui morrer. Não poderia morrer a vida que não era minha. Assim eu criei a minha imortalidade. Assim distanciei-me dela e de sua vida real. Vivi a vida que não era minha, para impulsionar-me à eternidade. Somos dois pontos da mesma linha que acaba na mesma coisa. Mas tal linha é tão grande que não podemos nos encontrar em ponto algum.
Nossas eternidades se diferem de tantos modos que nem sei se posso chamar-nos de eternos, talvez estejamos vividamente mortos?
Vividamente morto.

Imagino alguém abrindo essa garrafa e salvando-me, mas não posso mais ser salvo. Ela salvou-se e eu não a perdôo por isso. Nem se quisesse. Não ousaria.

Foi amor demais
Amor demais. Amar demais foi como viver demais e toda vida demasiada encerra em si uma imortalidade. E a minha imortalidade encerra em si uma morte eterna. Morri eternamente então?

Foi amor demais.

1 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

Caramba, cara isso saiu de tua cabeça mesmo?¿?¿?
Amei!!!!!!!!!
Beijos!!!

7:35 PM  

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