Confissão
Como se um ralo se abrisse no plexo solar e a alma, outrora fruta cheia de suco dulcíssimo e nutritivo, escorresse encanamento adentro, deixando vazio o peito que a abrigara. Resta uma caverna desconhecida e habitada por inimigos inomináveis. Serpentes sulfurosas e fungos poeirentos. Fósseis de medos anteriores à consciência se revelam após a seca do oceano sem vida que se esgotou.
Sento-me olhando o escuro das pálpebras.
Sento-me sentindo a indignidade de não ter parte com frutas e homens.
Sento-me e encaro a oca vastidão de peito murcho.
Sou-me agora uma fruta seca e de caroços infecundos.
Sou-me agora pedaço de terra sem nutrientes ao redor de uma longa planície verde e fértil.
Sinto-me uma palavra estrangeira nas bocas de um povo sem oclusivas.
Sou-me agora e era-me em outros momentos, refúgio de tudo que teme a luz e o dia, caverna santa para os morcegos dos olhos e para os insetos da boca.
Sou templo nato do aborto forçado e do parto sangrento.
Sou hora vã e frase abrupta.
Sou restos pouco bem vindos e poemas desnecessários.
Sou maldição e ofensa à família.
Sou pesadelo vil para o cansado e faminto.
Sou a pestilência das promessas que fizeram antes de nascermos.
Sou todo pescoço virado e retorcido de dor que não atura posições cômodas.
Tiro os sapatos a guisa de molhar os pés e adentro a caverna. Como se o sol se envergonhasse de estar nu e fosse expulso de seu paraíso celeste, anoiteço.
Como se carvão azedo tivesse talhado o céu de minha boca, anoiteço.
Como se mil cavalos estourados pisoteassem meu corpo e esmigalhassem minhas carnes, restando aos urubus e cães vadios os restos nervosos de meus membros, anoiteço.
Porque sou o condenado que experimenta o conforto de sua cadeira final antes do dia narcado,
Sou a queda - sem um propósito maior - de um pássaro cansado que morreu em pleno vôo.
Sou o ato vergonhoso e levantar as mãos conta o semelhante.
Sou o ranço envergonhado e ajoelhado numa caverna sem nomes.
Sou a mácula sangrenta no rosto.
A letra vermelha marcada no sangue.
Acordo e limpo os coágulos dos cabelos.
Retiro de mim deuses e diabos e nomes e marcas.
Assumo a prisão e dou-me voz de vencido.
Verme rutilante e vaidoso.
Parasita escarlatino e mal intencionado.
Infecção nervosa e multicolorida.
Sempre residual, sempre fragmentado, sempre mais.
Exorcizo o sono mascarado por olhos vivos e nariz afrontoso, quero conflitos maiores que eu, quero explosões cheias de som, quero vítimas violentadas pelos detritos e quero gritos e rios nas grutas da alma esvaída.
Quero a solidão indócil das horas não dormidas.
Quero a conquista dos exércitos derrotados.
Quero a coroa decapitada dos reis e quero as cicatrizes dos escravos.
Quero a queda e a quebra dos cofres.
Salve-me quem puder.
Tito de Andréa
Sento-me olhando o escuro das pálpebras.
Sento-me sentindo a indignidade de não ter parte com frutas e homens.
Sento-me e encaro a oca vastidão de peito murcho.
Sou-me agora uma fruta seca e de caroços infecundos.
Sou-me agora pedaço de terra sem nutrientes ao redor de uma longa planície verde e fértil.
Sinto-me uma palavra estrangeira nas bocas de um povo sem oclusivas.
Sou-me agora e era-me em outros momentos, refúgio de tudo que teme a luz e o dia, caverna santa para os morcegos dos olhos e para os insetos da boca.
Sou templo nato do aborto forçado e do parto sangrento.
Sou hora vã e frase abrupta.
Sou restos pouco bem vindos e poemas desnecessários.
Sou maldição e ofensa à família.
Sou pesadelo vil para o cansado e faminto.
Sou a pestilência das promessas que fizeram antes de nascermos.
Sou todo pescoço virado e retorcido de dor que não atura posições cômodas.
Tiro os sapatos a guisa de molhar os pés e adentro a caverna. Como se o sol se envergonhasse de estar nu e fosse expulso de seu paraíso celeste, anoiteço.
Como se carvão azedo tivesse talhado o céu de minha boca, anoiteço.
Como se mil cavalos estourados pisoteassem meu corpo e esmigalhassem minhas carnes, restando aos urubus e cães vadios os restos nervosos de meus membros, anoiteço.
Porque sou o condenado que experimenta o conforto de sua cadeira final antes do dia narcado,
Sou a queda - sem um propósito maior - de um pássaro cansado que morreu em pleno vôo.
Sou o ato vergonhoso e levantar as mãos conta o semelhante.
Sou o ranço envergonhado e ajoelhado numa caverna sem nomes.
Sou a mácula sangrenta no rosto.
A letra vermelha marcada no sangue.
Acordo e limpo os coágulos dos cabelos.
Retiro de mim deuses e diabos e nomes e marcas.
Assumo a prisão e dou-me voz de vencido.
Verme rutilante e vaidoso.
Parasita escarlatino e mal intencionado.
Infecção nervosa e multicolorida.
Sempre residual, sempre fragmentado, sempre mais.
Exorcizo o sono mascarado por olhos vivos e nariz afrontoso, quero conflitos maiores que eu, quero explosões cheias de som, quero vítimas violentadas pelos detritos e quero gritos e rios nas grutas da alma esvaída.
Quero a solidão indócil das horas não dormidas.
Quero a conquista dos exércitos derrotados.
Quero a coroa decapitada dos reis e quero as cicatrizes dos escravos.
Quero a queda e a quebra dos cofres.
Salve-me quem puder.
Tito de Andréa
2 Comentários:
"Como se o sol se envergonhasse de estar nu e fosse expulso de seu paraíso celeste"
Quando eu era criança, meu pai me comprou uns livros lindamente ilustrados de uma trilogia babilônica chamada "gilgamesh". Num dos episódios, Gilgamesh, que um dia fora um grande rei, perdeu seu melhor amigo e sai em busca da receita para a imortalidade. No caminho, ele passa pelos jardins do Rei Sol, onde há lindos e vastos campos de videiras e onde lhe é oferecido vinho, comida e descanso. Ele recusa. Você faria o quê?
Gilgamesh (Gilgamus), o rei dos demônios. Guardião dos portões da babilônia. Escarrou na cara da imortalidade e engoliu o pecado em uma bocada só.
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