sexta-feira, setembro 03, 2010

De todos os laços

Senhoras e senhores,
Membros do Júri,
Vocês, humanidade inteira,
Cada um de todos,
Todos que viram o pescoço quando há um grito,
Cada um que tem quem lhe grite,
Cada um que tem por quem gritar,

Acotovelem-se, pisem-se, amontoem-se,
Retesem os músculos, tencionem as têmporas, ranjam os dentes,
Ergam os punhos, batam os pés, fixem os olhos,

Venham arrastados, corridos, subidos em árvores,
De todos os lados,
Por todos os lados,
Em toda parte,
Venham.

Vejam:
Todos os olhos, todos os olhos que puderem olhar, olhem, vejam, o que eu posso dizer, o devo eu dizer, diante de tal laço? E para mim, para mim, Santo Juiz, para mim o que são laços?
A mim, o que dizem para mim todos os laços do mundo?
Eu, eu que só falo de mim, só conheço a mim, só sinto a mim,
Só a mim sofro e mato.
Eu que, sistematicamente, rompi todos os laços.

Todos os elos
Todos os elos, perdidos.

Santo Juiz, do útero, Meu Juiz, do útero! A primeira corda, o primeiro laço, rompido, logo rompido, com os dentes, com uma tesoura, com as unhas, rompido, não importa como, repito; rompido.
Rompido e enterrado.

Mas só toco no assunto por ser o primeiro de tantos. Tantos outros, tantos outros laços, não só físicos. Além da física. Muitos outros laços. Falo do primeiro, do da mãe, do início. Um marco. Apenas, isso, Pai Juiz. O primeiro e o último se encontrando, se vendo.
O primeiro enterrado,
O último pendendo.
É como estar dentro de um círculo. Que começa debaixo da terra e termina sobre ela. Para voltar em seguida. Como fazem os círculos.

Não cortei a primeira corda e não cortarei a última. Começo e fim. O círculo permanece. É uma pena? O pecado valeu a pena?
Mas é mesmo preciso falar de pecados? Um homem precisa, pois, definir seus parâmetros, e chego ao ponto crucial do meu discurso, Senhor Juiz, um homem precisa definir seus sentimentos e precisa, antes de tudo, saber o que quer dizer quando o diz e, ainda mais, quando não o diz. Pois sempre se está a dizer. Estamos mergulhados até as narinas nesse esgoto fétido chamado linguagem. Afogados. Condenados, infinitamente condenados. Mas antes de tudo é preciso amar ao próximo, não é isso? Amar ao próximo? A grande lição? Amar ao próximo como a mim mesmo? Como se fosse a mim? A mim, Senhor Juiz? Logo a mim?

Seria, então, definitivamente necessário, a partir disso, definir quem sou, o que quero para mim, o que espero dos outros e o que posso oferecer a eles.
Respondo:
Nada.

A todas as perguntas, senhores membros da humanidade, do júri, Santo Juiz, a todas as perguntas que me foram feitas por todos os interrogatórios a que fui submetido, pois todo tipo de conversação, para mim, sempre foi algum tipo, mais ou menos agressivo, devo dizer, de interrogatório.
Em todos eles disse pouco. Pouco quando disse.

Nunca ofereci nada, nem pensei em tentar pegar de volta qualquer coisa que me tenham tomado. Os olhares, Senhor Juiz, cada um dos olhares, dei-os de graça. Não se tem isso todo dia. Senhores membros da humanidade, são-me testemunhas, nunca pedi nada de volta. Nada. Assim como dei, recebi. Nada.
Não sei mais o que poderiam esperar de mim.

Mas me vejo hoje aqui. Diante do laço. Não que tenha sido trazido por capataz, Senhor Juiz, ou por mão hostil, ou braço forte. Não. Vim à força de minhas pernas à forca de meu laço.
Último laço.

Rompi todos os laços até que encontrei, devolvido a mim, o último.
Aquele que não romperei.
Fim de círculo, fim de partida,
Meu cordão umbilical com o mundo.

Tito de Andréa

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