segunda-feira, dezembro 13, 2010

Língua

ao amigo que me entregou essa história

- Falar. É preciso falar com alguém. Se só há você. Só há você. Para transmitir essa fala mastigada, nessa língua comida por traças, nessa língua comatosa que compartilhamos, que dividimos. Essa língua já apodrecida, velha demais, gasta demais, insuficiente. Só temos a nós para falar. Só temos a nós e o mundo já não é novo. Envelhecemos com a língua, fomos comidos assim como ela foi comida, e a terra dos pés agora cheira a pó e tem gosto de fumaça escura. Estão salgados os campos e até os deuses do pai e da mãe e as árvores e os pássaros falam outra língua. Para ouvir a essa da qual falo, só nós estamos aptos, apenas nós dois e até mesmo nós dois não tardaremos a morrer. Sim, primeiro morrerei eu, depois, com a minha ausência morrerá você. Os ritos em língua materna não ocorrerão. Mas devemos ser perdoados pela falta. Não é tão grave, não faça essa cara, não, veja, levaremos ao mundo dos mortos nossa língua igualmente morte e nossos ancestrais nos receberão com cânticos de vitória como aqueles que a infância guardou dos exércitos. Poderíamos falar sobre a infância agora, falar sobre isso, sobre a infância, dos pés na terra, do gosto das coisas. A terra. Foi prometida? Alguém a prometeu? Poderíamos falar sobre mais, só há você para me ouvir e só eu para ouvir a você, vê? Somos como irmãos dentro de um ventre, agora. Antes os homens, os outros, passavam por nós e nos olhávamos como se fossemos loucos, dementes. Colocaram-nos aqui. Longe. Para não incomodar. Que não incomodemos. E não usaram nossa língua para se dirigir a nós. Eu, eu e você, que somos esses velhos, que não servimos, falamos essa língua-vento, merecemos certo respeito. Que nos tranquem juntos, é ter alguém com quem falar, vá lá, mas que o façam direito, com respeito, com um rito. É preciso manter a calma, me aproximar, só há você para me ouvir, somos os últimos. Todos mortos ou convencidos, convertidos, esquecidos. Nossa língua capenga. Nossa língua muleta. Está louca. Só nós dois. E você mal ouve. Eu falo e você fala ao mesmo tempo, mal ouço o que você diz, quando me calo para tentar você faz o mesmo, quando recomeço tudo se inicia igualmente. Você mal deve ouvir também, mas eu levo a mão à cabeça e você faz o mesmo, eu me afasto e você se afasta, me aproximo e você volta. É preciso dizer. Falar. Se só há você, falo com você. Que par. Nossa língua mereceria mais? Não. Provável que não. Que par. Poderíamos falar sobre isso. Em nossa língua é possível falar sobre qualquer coisa. Tudo. Poderíamos falar sobre tudo. Mas eu tento tocar sua mão e só toco o vidro. Quem dividiria duas celas com vidro? Quem constrói duas celas tão iguais e simetricamente inversas? Você tenta me tocar também, o rosto frustrado, igual a mim. Posso sentir em mim que as feições são iguais, não são? Igualmente frustrados. Poderíamos quebrar o vidro e nos abraçar, mas e se nos separassem? Não, não podemos arriscar, é preciso falar, é preciso falar. É preciso que haja alguém. Qualquer um. Só há você. Que entenda. Que entende. É preciso falar...


Tito de Andréa

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