sexta-feira, setembro 24, 2010

Só aquele que já ouviu o som dos próprios cabelos queimando poderá compreender o que sinto

Para além de tudo que seja cinza,
Fumaça e sal,
Pedra e papel: palavra.

Para além disso, antes disso
Entre isso, sempre no centro vazio.

Oco,
Oco tudo o que toco,
Oco tudo que vejo,
Conheço.

Apenas àqueles que já ouviram seus gritos,
Apenas àqueles que já choraram esmagados,
Por todo peso do mundo,
Por tudo desmoronamento, queda, silêncio de si,
Por todo olhar, todo tormento, angústia e rancor de amigo.
Apenas àqueles que tocaram a pedra mais fria e souberam que não tocavam nada
E que sabem que nunca tocaram nada
E que sabem que nunca tocarão nada,
Apenas a esses dedico este poema

Este poema-abandono
Este poema-deficiência deficiente.

Para além de tudo que tenha um desejo,
Para além de tudo que tenha qualquer coisa com um nome,
Acima disso, abaixo disso, aos lados disso,
Mas nunca isso,
Não, jamais algo,
Jamais, menos.

Àquele que sabe pronunciar o silêncio,
De braços abaixados e olhar veloz,
De cabeça firme,
Firme e sem direção
Firme e nula,
Apenas a este dedico o poema
O poema-fome
O poema-face.

As coisas se mantêm coisas.
Nunca dizem e nunca dirão,
Nunca tocam e nunca.


Às coisas cheias de poeira,
Cheias de doenças guardadas,
De palavras imundas,
De ranço e rosnados,
Deixo meus pertences mais preciosos.

Esvazio a caixa-forte-peito.
Despejo seu conteúdo sobre tudo,
Para que suje a tudo, para que sangre em todos,
Para que não toque a nada,
Todos os amigos e seus risos e suas asperezas,
Todos os amigos e suas dores e seus carmas,
Todos os amigos, todos eles e mais que eles,
Eles e o que eles são,
Mas não o que eles foram.

Abrem-se as bocas e falam mil vozes saídas do escuro,
Do dentro.
Mas meu nome já não é legião,
Visto que estou sozinho.

Despejo do balde assim chamado corpo
Litros e litros de mágoas,
De todas as cores os líquidos,
Com todos os odores do mundo,
Para perfumar os cabelos,
Manchar as roupas,
Ornar as ruas com vapores,
Para fazer fluir os rios do outro,
Para atingir,
Mas não para tocar.

Deixo, ainda, meus restos.

Da carne,
Um Deus já tão falado,
Um Deus cor de carne-viva,
Um Deus e só sal
E sol.

Dos sangues que sobrarem
Deixo o que neles ficar preso,
Algumas folhas secas, pedaços de papel, sete pedras (que não mataram um gigante), pontas de cigarro, poeira, areia, o chão onde estiver, a terra por onde passar e todo pé que já pisou esta terra.
Que fique por saber:
Pisou e não tocou.


Dos ossos deixo o que já está,
Um resto de ódio brando e ancestral,
Um paterno ódio amoroso,
Que ele possa te tomar nos braços e te dar amor.

Das unhas, dentes e cabelos
Deixo tudo que estiver vivo neles.

Do falo e dos rins,
Deixo tudo que eles nunca tocarão.

Dos joelhos e testículos,
Cada pequena dor súbita.

De todo o resto leve o que encontrar,
O que desejar encontrar,
O que puder,
Preencha com gananciosa esperança todos os bolsos da roupa,
Todos os recipientes que tiver levado junto.

E ao que sobrar,
Se sobrar,
Permita o que eu permito
Que se abandone à intempérie de um sol
Um sol que nunca me foi nada
Que nunca me deu nada além de nada,
Além da secura da rua
Além da certeza clara, clara como tudo no seu meio-dia,
Da impossibilidade,
Do passado
E do sono.

O poema que sobra
Não guarde.
Deixe aos que gritam e sabem
Nunca ter tocado nada.

Tito de Andréa

1 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

Lindo.

10:37 AM  

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