terça-feira, fevereiro 01, 2011

Feartrap

Todo desespero mínimo o que eu desejo,
Minúsculo grão de poeira ensolarado,
Quase inaudível som de dentes que rangem,
Portões que gemem,
Pernas que abrem,
Gotas que somem,
Sementes que nunca germinam, mas racham a terra e continuam involuntariamente sua longa jornada para o esquecimento.

Ser morno na boca do Senhor e esperar,
De todo coração,
Ser cuspido para o vazio sonolento e violento
Onde já não há nada, pois a ausência seria tudo.

Conviver com todo tipo de fera,
Rezar todo tipo de rosário mortuário,
Consolar viúvas e enterrar corpos,
Velar escorpiões,
Chorar por toda mosca,
Se embriagar de todo mal entendido,
E permanecer diante do abismo com um certo sorriso.

Perder todos os amigos no jogo,
Vender a casa,
Vendar a família,
Queimar papel,
Incinerar órgãos,
Cheirar a fumaça que resta,
Cultivar pequenos vícios,
Cultivar todo defeito,
Deixar crescer os pelos do rosto
E
Ser feio,
Ser feio,
Ser feio.

É meia noite e poderia ser qualquer hora.
É meia noite e poderia ser um meio dia.
É meia noite, mas o sol que arde dentro incomoda tanto quanto o que arderá fora em poucas horas na cidade infernal onde as cinzas da fogueira se transformaram em moradia para poucos.
Na cidade imberbe e sem história que golfa pedras e corrói castelos.
Na cidade forte que finge de morta para, na hora certa, ativar a ratoeira que faz o seu corpo, já decapitado convulsionar voluptuosamente.
Na cidade guilhotina que come meus livros e sorri amarela de suas casas-casebres-abandonos.
Na cidade podre com seus cemitérios condecorados, suas praças hospitalizadas e militarizadas, suas ruas cheias de sacos que guardam, eu bem sei, corpos de gente que nunca morreu e não poderia ter morrido porque jamais chegou a viver.
Na cidade aborto que cava buracos sob seus pés para que se caia numa armadilha do medo.
Na cidade cidadela que fomenta conversas sobre pânico em salas guardadas por lentes e grades enquanto a vida sopra do lado de fora onde não se pode estar.
Na cidade lacuna onde nossos pais desejarão ter suas lápides fincadas.
Na cidade rasura onde eu não quero morrer, onde eu não quero viver, onde eu não quero suar nem amar mais que o suficiente para saber que aqui é o lugar dos mortos e dos oprimidos e dos cansados.
Na cidade cactus que não é bela nem áspera, nem intratável, visto que há nela toda uma impossibilidade de ser.
Na cidade que não é.

Bem aventurados aqueles que se vão daqui para todo o sempre e além dos tempos.
Bem aventurados aqueles que enlouqueceram de febre e esquecem onde estão.
Bem aventurados aqueles que visitam, maculam, aliviam-se e seguem adiante.
Bem aventurados aqueles que compreendem o desespero de viver.
Bem aventurado eu.
Bem aventurado eu que não acredito em um Deus e que estou condenado por todos os olhos.
Bem aventurado eu que não acredito na humanidade e que estou condenado por todos os olhos.
Bem aventurado sou eu que amo e me permito ao amor, apesar de tudo.
Bem aventurado sou eu que me permiti perder sistematicamente aquilo que perdi.
Bem aventurado sou eu que fui mastigado pelas horas dos dias incômodos.
Bem aventurado sou eu que não sou melhor.
Bem aventurado sou eu que fui condenado à má vontade de todos os semelhantes.
Bem aventurado sou eu que desejo o pior de cada dia, sorrindo freneticamente a insônia,

Que quero o oco dos olhos,
Que quero pagar todas as prestações da minha dívida,
Dizer a eles todos o que penso:
Que não desejo permanecer sujando meus pés em sua terra magra,
Intoxicando minha alma com seus santos contraditórios,
Amargando minha língua com sua fala vencida,
Remoendo suas mágoas fora de validade,
Colhendo rosas sem pétalas e sem sexo, secas como tudo que há em sua terra.

Permitir-me ser feio,
Ser feio,
Ser feio é algo que se pode desejar.
É tudo que se pode desejar.

Afastar os outros com pedidos de esmola impossíveis,
Saborear um substantivo orgíaco e deixar a língua convulsiva pelo palato e pelos lábios e fora deles enquanto pernas rijas pressionam suas orelhas,
Fugir do universo para um lapso temporal onde só há ela,
Fugir da cidade maldição que abocanhou minha vontade e podou as árvores com formatos imbecis.
Da cidade salina enfeitada.
Da cidade árvore de natal com luzes fracas.

Ah, cidade, nos encontramos novamente em meu poema,
Ah, cidade, eu sei como se sentem aqueles foram roubados,
Que foram enganados,
Que foram vilipendiados de alguma forma,
Que foram saqueados por sua vigarice,
Que foram vencidos pela sua noite,
Que sentaram em sarjetas com garrafas vazias,
Que tiveram de fugir, de gritar, de maldizer o sol,
De inventar qualquer coisa, qualquer tipo de jogo, de palavra mágica, de montanha com segredo, de ladrões místicos e não viciados,
De inventar um amigo, de criar literatura, de gastar tudo que se tem em qualquer tipo de coisa que afaste seu nome do meu, cidade,
Seu nome infecundo,
Seu nome infecto,
Inanimada cidade dos ratos e da fumaça e dos escorpiões.

Chove em ti, cidade,
O trem não passou ainda,
Hoje estarão mais que atrasados todos que me encontrarem,
Sua hora passou e estou aqui.

É preciso inventar novas covardias e novas malícias para permanecer.
É isso o que eu mais desejo,
Uma covardia nova,
Uma covardia segura, mais covarde impossível.

Desejo ardentemente ser cuspido da boca do senhor,
Desejo ardentemente não fazer sentido nenhum,
Para ser visto como lunático,
Para ser tratado como paranóico,
Para ser compreendido como um masoquista do espírito,
Inferior a tudo que penso,
Inferior a tudo que construo,
Morto, eternamente morto e eternamente vivo.

Ah, cidade, que grande piada.
O que você fará no fim de seu espetáculo e notar que ninguém mais permaneceu para assistir?
O que você fará?
Com suas luzes amareliças e opacas,
Com seus homens realmente machos e realmente potentes e realmente capazes de cometer violências,
Com seus homens raquíticos e armados e cheios de todo tipo de doença que não mata,
Ah, cidade, com quem você foi se meter?
Com quem você se associou?
Agora é uma menina suja de sangue da primeira menstruação e está viciada,
Viciada em asfalto fresco e de qualidade profundamente questionável,
Viciada em pedras,
Em pó de fuligem,
Em fumaça cinza,
Em ervas daninhas,
Em mendigos que mais são peças no jogo de xadrez que inventamos para assistir o apocalipse.

Ah, cidade, prometo já não te dar nada,
Prometo virar meu rosto,
Prometo não devolver o que me deu,
Não entregar de volta tudo que ganhei de ti,
Prometo não me vingar.

Sigo com meu desejo de ser incompleto,
Eternamente incompleto,
Inquietamente incompleto,
Dotado de uma sagrada incompletude,
De uma fabulosa derrota,
Afirmando a força da gravidade em tudo que faço,
Celebrando comemorações de anos novos que se iniciam a cada hora,
Comemorando velórios,
Presidindo missas aos inválidos,
Aos igualmente incompletos,
Aos vencidos,
Aos enjeitados,
Aos perseguidos,
Aos paranóicos,
Aos delirantes,
Aos irritadiços,
Aos enganados,
Aos desacreditados,
Aqueles com nome sujo,
Aqueles com mente suja,
Aqueles que desistiram.

Girando, sempre para baixo, sempre para o fundo, até atingir o piso,
Até atingir algo,
O mais mínimo dos desesperos,
O mais ínfimo grão de poeira,
O menor, o pior, o mais fraco,

Me amem também,
Amém.

Tito de Andréa
2011

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