terça-feira, maio 24, 2011

Poema-biografia-afásico ou Blues da total incompetência ou Da tragédia de todo poema ou Poema-biografia-Rir-de-si

É preciso, o poeta pensa, é preciso escrever uma faca,
Mas não uma faca comum, uma faca cega de tanto cortar,
Uma faca com um olho, uma faca morna.
É preciso, ele pensa, ele pensa uma mão cheia de precisões,
Ele pensa os olhos cheios de ouro,
Ele pensa um veneno escorroso e corrosivo nos suores,
Ele pensa secreção, escorpiana cauda,
E morre-se.
Ele começa.
Impera a necessidade,
É preciso, ele repete, sempre.
– É preciso é preciso é preciso é preciso é preciso é preciso.

O poeta está nu,
Violentamente despido,
Imundo de suores e odores,
O poeta está e não escreve.

É preciso cantar, de alguma forma,
De algum modo, sem - que se diga agora, como me indicou um poeta amigo de certo professor Doutor - utilizar-se de adjuntos adverbias, sobretudo aqueles que tem como função demonstrar modo, repito, é preciso cantar de algum modo essa incompetência carnosa que ele propaga.

Algo ele propaga. Mas não comecemos o coro de risos.
Ainda não.

Há de chegar a hora de chamar os conhecidos, os amigos e as animosidades para dar seu depoimento.
Sim, pois há sempre a hora do juízo onde meia dúzia de amigos persistentes receberão voz contra todos os outros.
Todos os outros que ficaram cansados,
Todos os outros que não tiveram mais o que dizer,
Pois é bastante comum na humanidade esgotar a possibilidades de frases novas a dizer para outra pessoa e o silêncio, ao contrário do que prega a voz vigente, não diz muita coisa, é preciso que se diga.
Todos os outros que não gostam, que odeiam ou que implicam.
Hão de ser muitos.
Mas não ainda:
Ainda não.
Ainda não.

Antes de tudo é importante contemplar certos aspectos de sua nudez muda.
Adjetivos ainda são permitidos, ele pensa e sorri.
Ele pensa e sorri.

Mas poderia dizer que o lar é onde se guardam corações, ou quando, como disseram depois. E poderia maldizer o sol, como é de seu feitio, ou, num momento mais infantil de velado retorno à mediocridade da adolescencia, essa esfinge derrotada, Édipo vencendo seu complexo e fazendo a mãe de Freud tão infeliz... Ele poderia falar da morte.

Mas ele está nu. Ele não tem nada a dizer e nem é meia noite nem é meio dia.
A hora do lobo passou e, quem sabe certa quantidade de álcool ou a escolha musical adequada possam ajudar um pouco... Talvez a mulher nua possa ajudar um pouco, talvez a intensidade correta... Aplicada à vontade correta, talvez a vida possa ajudar um pouco...
Mas não.

O poeta está nu.
Para um pouco para pensar em destruir a si de formas trágicas,
Desvela-se para os mais próximos,
Chama-os para presenciar sua desgraça exterior - a nudez - e guarda, mascaradamente, o que persiste dentro para outra hora, outra hora quem sabe mais feliz, outra hora quem sabe menos morta, tanta mentira...

Ele guarda para outra hora. Uma hora onde ele possa sentir as trombetas dos anjos e os aguilhões dos demônios.
Uma hora com Stravinsky e a primavera,
Uma hora com Mozart,
Com Beethoven,
Com Bartók,
Com Chopin.
Com o diabo que o valha para salvaguardar um lugarzinho no inferno para uma rápida estadia que valessa a Rimbaud uma coisa qualquer.

Uma última pérola que pudesse trazer de lá, do inferno, da profundidade mais esquecida, no canto menos cantado, com tudo o que está ao redor,
Com todos os Deuses mortos, enterrados - em vala comum ou não –
Com todos os homens mortos - suicidados ou não –
Com todos os diabos - sorridentes ou não –
Com tudo que puder, ele espera e faz suas libações e tenta.
Com fôlego – ou não –.

Oremos, pois não é possível.
E já não será possível depois.

Mas é imperativa a tentativa frustrada,
É imprescindível que se debata,
E que se esmurre,
E tente mergulhar,
E vá mais fundo do que possa,
E que tenha uma embolia na alma,
E que suba velozmente, com os pulmões clamando por ar,
E que jamais o encontre novamente.
E que não possa mais, pois já não é possível, pois está nu e morto.

É importante - ele pensou pela manhã quando tudo era novo e dia não fedia a guardado - estar meio morto sempre, para poder melhor saber-se.
É preciso estar meio morto sempre para melhor sentir.
E rasgou-se todo em papel velho de versos amarelos e terríveis.

Oremos, pois já não é possível,
Mas é preciso que ele saiba como vociferar sua incapacidade
Que escrita é incapacidade e não é possível dizer nada.

Mas ele guarda, ele guarda a incompetência para si.
Ele a tem e a ama e a cuida.
É preciso cuidar das coisas que se tem, ainda mais quando não se tem muito, ainda mais quando não se tem nada e ele espera o inferno que virá, com um Van Gogh de braços abertos e sem orelhas para ele ser,
Ele espera o inferno inteiro para poder ir buscar o mais baixo tesouro do mundo.
Ele espera atingir algo,
Nem que seja um dente partido de tanto ódio
Ou
Uma chuva inversa que esbraveje conta as núvens.

Mas o sol não é bom para ele e ele disse não para todos.
Mas o lar não é onde o coração está – nem quando, ouviram –
Não há mais coração,
Não há lobos em suas horas,
Não há.

Acabou.

Tito de Andréa

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