terça-feira, outubro 10, 2006

Doar

Ela olhava para mim? Não, nem por um instante ela me olhou, nem por um instante seus brancos olhos negros me olharam. Ela mantinha-os quietos, como dois cães a quem amava. Ela os acariciava com sua tristeza. Não olhou para mim nem uma vez.
Mas eu ousei olha-la, ousei encarar seus dentes poucos, sua pele velha e enrugada, seus cabelos desgrenhados e brancos – porém desgrenhados numa notável organização de gente velha e triste. –. Eu olhei em seus olhos. Estendi minha mão e entrei em seu medo, penetrei em seus sonhos. Comi com as mãos cada um de seus temores, e tudo que ganhei foi uma terrível frieza.
Ela era fria. Era uma velha morta, morta em vida, esquecida. Era uma velha demente, calada e sofrida. Ela era a verdade dos tempos, e eu olhei em seus olhos. Nem ao menos tive meus olhares retribuídos. Ela não me olhou.
Só te digo isso para que entenda meus olhos fechados. O que ganhei ali não me permite abri-los, não me permite encarar mais alguém. Não tenho vontade de perder o que tenho agora. Abriria meus olhos apenas para ela, mas nada valeria.
Ela me ensinou a rir. Ela me ensinou tudo sobre a vida, ensinou-me tudo sem ao menos olhar-me. Cinco minutos em sua franzina e mesquinha companhia e ela me mostrou o mundo. Ela me mostrou as moscas – que mais tarde me adotaram como pai – Ela me mostrou uma nova forma de morrer.

Abre os olhos? É tudo que me diz? Então hei de rir, de ti e teus olhos abertos, teus olhos mortos. Rir de ti, e teus olhos mancos, teus olhos fracos, anêmicos. Fechei os olhos, pois neles está a ferida aberta, neles está o sangue do mundo. Minha carne podre. Neles guardo larvas de moscas, e neles sinto a vibração de uma vida que começa.
Sinto as moscas novas com suas asas crescendo em meus olhos. Abre os olhos. Abre a boca. Come. Bebe, baba. Em meus olhos está tatuada a humanidade em sua mais simples e feia vida. Em meu cemitério está enterrada toda a esperança. Em minha surdez calaram-se os gritos e em minha mudez eu vi morrer todas as palavras. E tudo isso foi ela quem me deu.
Maldita velha bruxa.
Ela me deu um ódio amoroso.
Cuspo no mundo. Cuspo um sangue conciso e vigoroso. Um sangue cheio de catarro. Minha hemorragia pulmonar. A fumaça da vida agarrou-se a meus cabelos, era feita de gente morta, uma velha morta. Era feita de merda e cabelos queimados. Cuspo meu sangue que tem mais doenças que sangue em si. Cuspo em teus olhos abertos. Em meus olhos fechados. Cuspo nela e em sua tristeza. Em meus olhos concentro a visão que tive. Concentro a morte que tive. Concentro mil moscas treinadas, que me trarão comida e leite. Dar-me-ão de sonhar. Conheço teus olhos abertos e teu mundo de luz. Cuspo em teu sol. O meu sol é muito mais real, ele é feito de mil bombas nucleares, meu sol é a tua terra. Cuspo em teus olhos abertos.
Cansei de ver tuas vistas, de sentir tuas paixões. Cansei de ser teus olhos abertos para um mundo que nem é meu nem teu - É dela. - Cansei de tuas palavras sadias, não quero saúde.
Deixa-me ser cego em meu mundo escuro, pois sempre quis ver o mundo sem a fina membrana da luz. Esse mundo engolir-me-á, e então serei mais um de seus filhos. Mas um filho vívido, pois em meus olhos – fechados – vive meu exercito.
Abrir os olhos. É tudo que sabe fazer. Abrir os olhos e verter lágrimas. Eu abri as cortinas da pele, abri a ferida purulenta, abri a carne, abri um olho em cada dedo. Meu tato é visão. Eu abri o mundo. Eu abri a vida. E nela depositei meus ovos.

Tito de Andréa

1 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

Esse texto é muito bom! Realmente ele nos prende a atenção, ele entra em nossa alma. Um texto deste não se lê em qualquer lugar.

7:14 PM  

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