sexta-feira, agosto 03, 2007

O guardador de cavalos

Primeiro foram os ossos depois mais ossos e então a carne e o sangue.
Primeiro foram veias e depois mais veias e então os tendões e a medula.
Primeiro foi a alma e então mais alma e depois a razão e a voz.

E voz sempre tivemos de sobra.
Sempre gritamos por tudo, sempre berrando alto e mais alto então.
Até ficarmos surdos, mas de que vale a audição quando se tem voz e tanta alma contida?
De que vale o corpo quando se tem tanto ser para ser, de que nos valeu?

Ah, primeiro foi o sopro depois mais vento e então a vida.
E nunca foi o bastante
E sempre precisamos de mais e mais. E chegou o momento que era tanta que criamos algo ainda maior com ela e esse Algo era tão imenso que precisava se alimentar de alguma forma.
E demos e Ele comida o suficiente para matá-Lo.
Amamo-Lo tanto que Ele acabou por se afogar em amor e morreu.
O funeral foi longo e lamurioso, mas suportamos a perda.

Primeiro foi o dia e depois mais dia e então a noite.
E foi tão longa que precisamos de cobertores, pois o frio era grande e estávamos sozinhos e mortos.
E não parecia a mim tão ruim quanto era aos outros.
Pois todos gemiam e caminhavam cegos.
Não me foi ruim.
Não me foi tão ruim, já que depois de surdos estávamos todos então: cegos.
Era calmo e escuro onde eu estava e já não tinha a angustia viva pulsando e bombeando mais e mais dentro de mim.
Era calma e escura a minha paz.
Livramos-nos da morna e livre vontade de viver e tudo de uma única vez.

Primeiro foi medo e depois mais medo e então o sono.
Mas não sem antes deitar tudo a perder.
Não sem antes atear fogo às plantações e estábulos.
Secou tudo.
Não havia comida nem água.
Só havia sangue e carne.

Só havia suor e sol.
Só havia frio e sangue e morte.
E não éramos mais criadores nem criaturas.
Éramos apenas eu.
E eu só enfim.

Primeiro foram nervos e depois mais nervos e então a dor.
Foi no flamejante funeral de meus animais que eu me lancei.
Meus cavalos vibravam e ardiam em chamas.
E eu me regozijava com o choro e o estalar do fogo.
E eu era também parte de tudo.
E eu era louco e são e perda e vitória.
E eu era tudo até não ser mais nada.
Nada então.

Meus cavalos fugiram à noite e não voltaram.
Que sobra para mim então?
O que resta do céu para aquele que viu tudo?
O que ganho eu que presenciei e testemunhei cada minuto da vida?
E a vi nascer, criar e minguar e o que ganho?

Guardo em meu bolso o resto das cinzas de minha casa e estábulo.
Ainda escuto, no meio da surdez e da cegueira o relinchar dos meus cavalos e eles estão livres e vivos em mim.

Vivem em mim
De mim e para mim.
Amém.

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