quinta-feira, fevereiro 02, 2012

Poema biografia 18:18

Para todo mundo
Vivo ou morto

Hoje meu poema tem esse gosto de Jazz
Essa derrota azulada que se abateu sobre nossas cabeças
Em forma de uma chuva a muito desejada,
Ou como cavalos comendo lixo em certa rua movimentada por onde passei
Muitos anos atrás
E que ainda me povoa como me povoam pombos,
Como me povoam todos que vi
Como me povoam as legiões do império romano,
E demônios do império cristão,
E soldados do império ocidental,
Marchando dentro e fazendo tremer meu continente.

Hoje meu poema tem um gosto de sangue velho,
Como aquele que fica na boca quando se acorda
E se mordeu a bochecha por dentro
E cospe-se uma saliva amarela e coagulada
E a cabeça sabe doer como se deve.

Hoje meu poema me sabe um gosto antigo,
Como as vespas de cobre na janela de minha avó,
Como as florestas convulsivas de meu bairro natal,
Como as ruas vidradas da cidade onde moro e de onde fujo,
Como minhas próprias veias constrangidas,
Hoje meu poema me cheira como flores pisadas
E gritos de alerta de criança,
E um cachorro doente:
Terminal, o cão
Terminal, eu
Porque há um pouco de mim no cachorro que vai morrer,
Porque há um pouco de mim nas vespas da janela que já morreram.
Vespas e janela e avó,
Porque há um pouco de mim nos pássaros desafiadores que fecundaram a pilastra,
Porque há um pouco de mim em tudo e em tudo estou, também, de alguma forma morrendo.

Porque há morte em tudo
E isso eu venho repetindo como antes repetia,
E eu venho tentando mostrar a todo custo isso
E venho tendo longas conversas comigo mesmo,
Longas e cerebrais conversas que encerram sem nunca findar
E eu me repito sobre a morte e sobre a força da morte e sobre a presença da morte,
E sobre o universo inteiro, que caminha para ela,
E sobre a vida no planeta que surgiu, mas não é guiada, nem guardada e que vai morrer,
E na entropia de todas as coisas, cada vez mais próxima dos equilíbrios
E penso no Santo Buda que pregava isso muito antes de eu poder entender
E penso em Jesus Cristo falando sobre amar a tudo
E penso em Lao Tse falando sobre o vazio, que também é uma forma de morte
E é a morte que me dá o sentido de tudo, muito antes do meu corpo ser um corpo,
Muito antes de meus átomos serem átomos,
E muito antes de vibrarem cordas e retesarem forcas,
E é o vazio em tudo e é a morte em tudo que preenche a tudo.

E eu venho pensando e pregando a mim mesmo esse longo e negro jazz que explode o universo,
E que vai fazer o próprio universo calar a boca um dia,
Quando de estrelas mortas fizer o coração,
Quando as cinzas forem o único alimento do monstro,
Quando não houver olho para ver e boca para duvidar,
Provaremos do sol muito antes de tudo,
E eu penso nos santos e nos mártires e nas lápides,
E eu penso em Rimbaud e nos seus delírios,
E eu penso na realidade que é bruta e frágil,
E eu penso na vida nova da criança que chora no berço ao lado e que é tudo e não é nada e tem em si todas as possibilidades da vida,
E eu penso na lentidão das horas de minha cidade natal,
Onde há uma convulsão de vozes e cheiros e gostos,
E onde eu posso ser réptil preguiçoso ao sol.

E eu penso em todos os anos que passaram,
Minhas vinte e duas histórias de morte,
Minhas vinte e duas vitórias perdidas,
Minhas vinte e duas voltas ao redor de um sol que aprendi a odiar e a amaldiçoar,
E giro de volta ao Santo Hamlet e seus delírios e sua grandeza louca,
E em todos os delirantes perdidos lunáticos fanáticos paranóicos esquizóides,
E em tudo que eu sou e em tudo que me diz tudo,
E eu tento a comunhão do Santo Whitman,
E eu ergo os braços como o Santo Allen,
E eu me lanço à febre e ao desespero do meu próprio deserto,
E caio em toda oportunidade que tenho,
E peco e mancho e sujo e maculo e conspurco e profano a tudo onde coloco minhas mãos
E hoje escrevo esse poema como quem vive
Simplesmente porque cansei de não fazê-lo.

O mundo para por uns instantes,
Não é a primeira vez e já não será a última,
Muito já foi dito e não há nada novo sob o sol como profetizou Salomão muitos anos antes de coisas não poderem renovar a si mesmas.
Hoje o poema tem gosto de tempo e tudo o que eu escrevo é triste como eu sou triste, mas não o tempo todo.
Não, não o tempo todo.
Nada para sempre, por favor.
Cansei de imortalidades e escrevo esse poema como quem escreve um poema sem pensar muito, mas pensando sempre, porque sempre se está a pensar a não ser quando se é um Buda Santo e aí tudo já foi pensado e eu não quero esse destino ainda.
Não, ainda não.
Nada para sempre, por favor.

E eu tenho saudades também.
Estar na Bahia é ter saudades para mim,
E eu me volto para o mar sempre que não tenho o mar por perto,
E eu, verdadeiramente não gosto tanto de praia, mas o mar é lindo e sempre.
A única coisa para sempre, por favor, que seja o mar, que seja o mar, que seja o mar, que seja o mar, que seja o mar, por favor, a única coisa para sempre.

E eu penso em gente morta e penso em gente viva,
E eu penso em ver e penso em não ver
E eu penso em ser e penso em não ser
Mas hoje, hoje e apenas hoje, escrevo como quem está cheio de vida e com sorrisos verdadeiramente genuínos,
Hoje, apenas hoje, e para todo o hoje, mas não para todo o sempre, por favor.

E eu sento aqui, com o jazz, com o cavalo, com o lixo, com as vespas, com a janela, com a avó, com o mar e com as saudades e com a Bahia e com Buda e com Jesus Cristo e com Walt Whitman e com Allen Ginsberg e com Uirá dos Reis e com saudades e com vida.
E eu escrevo como quem escreve,
E eu posso porque estou longe e não estou desesperado,
E meu pescoço está livre e eu respiro bem e não tenho mais medo,
Pelo menos por hoje eu não tenho mais medo,
Porque eu morrerei um dia, é bem verdade,
Minha avó já morreu, é bem verdade,
Em tudo há morte, sabemos, já dissemos isso um ao outro tantas vezes,
E em tudo há tudo, e a vida é ainda maior, até que não seja maior, porque o tempo é ainda maior, e o universo está debaixo de leis e tudo vai morrer até que nada mais possa morrer e então nada:

Nada que é o mesmo que paz,
Nada que é o mesmo que solidão,
Nada que é o mesmo que nada
E fim.

Tito de Andréa
2012

quarta-feira, janeiro 18, 2012

Meu

às três pessoas que moram em minha esquina

Seria uma boa hora para colocar chumbo derretido por sobre o papel,
Gotas de mercúrio,
Pedaços de vidro de um termômetro quebrado
E sangrar a máquina de forma que o meu silêncio pudesse realmente dizer algo aqueles que procuram palavras nele.
De forma que meu silêncio possa simbolizar algo.

Algo que não seja a covardia, minha covardia, de não dizer nada.
Pois, de onde eu venho, palavras dizem muito e, aos olhos, resta o espetáculo das coisas do mundo,
Os olhos prestam-se apenas para ver
E não para dizer o que não pode ser traduzido na terra.

Já está dito que não decifro olhares,
É do conhecimento de todos que não sou dado a alquimias espirituais,
Que não estou apto a reconhecer ouro no outro, a não ser que me seja mostrado,
E que meu silêncio só pode ser se não: silêncio
E o espaço descolorido entre uma palavra e outra apenas permite a si mesmo não ser.

Essa hora de madrugada assombrada bem que poderia se mostrar mais fértil,
Com a coloração certa nos lábios e seios perfumados,
Poderia surgir para me dar algo, uma dádiva,
Alguma forma de milagre,

Mas o som dos carros e das motocicletas é real no meu poema e não há nada que eu possa fazer.
Essa impotência será uma forma de salvação.
Essa inatividade me levará, cedo ou tarde, ao caminho perfeito, ou a lugar nenhum.
Saberemos mais tarde,

Mas agora é importante saber acariciar a madrugada com os dedos para lhe dar um rubor mais apetitoso,
Saber bolinar, com a ponta do indicador e do médio, o fruto da madrugada,
Para perceber as mudanças em sua respiração,
Para sentir seu calor umedecer,
Para ver suas pernas abrindo
E penetrar fundo nela, para seu reino de traição.

O que se pode fazer
É, pois, levantar-se com decisão nos gestos,
Arrebatar a garrafa da prateleira de cima,
Com uma firmeza nunca dantes demonstrada abrir a tampa e
Derramar em um copo agilmente conjurado de outra estante
Uma corajosa quantidade de líquido,
Para poder fazer uma nova conexão
E beber escondido de todos os outros a bebida quente e forte que ainda me arranca caretas.
Beber escondido e chorar escondido...

Ah, Hamlet, quantas lágrimas por nós?
Nós, os palhaços trágicos,
Nós, os traídos,
Nós, os loucos com sentimento de grandeza,
Quanto, Hamlet, quanto do choro do mundo por nós?

Mais um gole, mais uma careta,
Hoje não é preciso disfarçar,
As coisas são amargas e me torcem o nariz,
Tenho diversos tiques nervosos,
Algumas neuroses bem cultivadas,
Muitos medos envelhecidos há anos, guardados em cofres,
Nenhum amigo, mas diversos conhecidos
E esse poema é uma forma de dizer sim.

Sim, eu ainda penso em todos vocês,
Sim, eu estou pisando em ovos,
Sim, eu estou desanimado e fraco,
Sim, tão desanimado quanto é possível,
Esse desânimo é a minha paga e eu ainda sou o mesmo e eu ainda estou sentindo.

Meus bolsos não estão cheios, mas os sinto pesar,
Outubro veio levando embora meu idílio.
Eu já não sei em que estação vivemos agora,
Mas eu penso em nomear a tudo com as cores do outono que nunca vi,
Mas que imagino.

Sim, eu ainda sinto aquela inveja contra todo mendigo e indigente do mundo,
Eles e suas camas suadas,
Eles e seus pés imundos,
Eles e suas mãos estendidas,
Com o nível mais básico de todas as necessidades do mundo lhes sendo negado,
Colecionando latas,
Confeccionando vícios,

Eles que perderam tudo e que tiveram muito,
Eles que não tem mais nada,
E já não podem perder o que posso,
Porque a força da gravidade se impôs ao máximo e,
Como costumava dizer certo personagem de minha infância,
Do chão não é o costume deixar alguém passar.

E sim, eu sou desesperadamente egoísta,
Sim, meu auto construído ego é maior que eu,
E hoje, meu maior medo é não poder mais diferenciar.

Ah, Hamlet, por nós, os irremediáveis, nenhuma mão virá.
Mais cedo ou mais tarde todas as costas mostrarão suas faces,
Cedo ou tarde nenhum amigo ficará,
E nossa vida-Dinamarca se desfaz em veneno.
Ah, Hamlet, por nós, os insensatos, nenhum conselho chegará a tempo.

Mas é preciso afiar os olhos e seguir.

Eu não sei se há algo para acreditar.
Pensar em morte não é novidade para os mortos e é a vida que se faz grande mistério,
Esfinge decifrada e traiçoeira devorando a tudo...
Ah, Édipo, dessa não escaparemos.

Nesse exato momento todo o mundo dos apartamentos aos lados existe e acontece de forma real e concreta, dispensando toda metafísica e seria de terrível mal gosto creditar a si mesmo ser único,
Oh, vaidade chamada homem...
Salomão, não somos diferentes, eu e tu...

Seria essa a hora de povoar o papel com palavras feitas de chumbo,
Não temos mais tempo,
Eu não quero mais saber,

Isso de sempre se colocar diante dos outros é extremamente cansativo,
O meu inferno sou eu,
Mas ao lado alguém sorri,
À frente uma mulher de cabelos presos e escuros procura algo na bolsa até que encontra seu telefone e, ao mesmo tempo, posso ouvir dois adolescentes conversando atrás de mim
E estou bastante seguro de estar me afogando com os pulmões cheios de ar, em pleno engarrafamento às seis e vinte e sete da noite, em um ônibus cheio de outros infernos.

Porque o meu inferno sou eu e, para mim, não há um santo que me olhe com carinho.

Eu não estou doente.
A cabeça pesa, é certo,
As mãos doem, é bem verdade,
Os joelhos não são bons, assumo,
Fora isso, antes disso, no mundo urge uma necessidade de estar vivo e é isso que me falta.

Essa minha madrugada mantém seu ar morno para mim,
Ela me deseja,
Sopra quente nas minhas orelhas,
Serpenteia a língua na minha nuca,
Desce pelas minhas costas com as mãos
E sobe sulfurosa lambendo minhas virilhas,
E morde minhas coxas,
E acaricia meus testículos,
Ela sabe como ser agradável, a madrugada,
Ela sabe como ser boa,
Afasta minhas pernas e abocanha meu pau e me faz gritar,
E me masturba enquanto sussurra aos meus ouvidos e se insinua toda, essa madrugada,
Apenas para interromper o coito e se afastar sorrateira e sorridente
Me abandonando a mim,
Me deixando sozinho com o meu copo e com o meu corpo e com seu calor.

Viro o resto do copo e não faço caretas,
Estou sabido.

Para um pouco,
Vai à janela olhar a rua...

Ah, Hamlet, se o fantasma de meu pai aparecesse,
Se houvesse um plano para mim,
Uma série de sortilégios e um coveiro verdadeiramente trágico,
Ah, Hamlet, como poderíamos ser iguais...

Mas aqui nada me anima mais do que a desistência,
E eu não tenho a quem recorrer,
Estou velho no inicio da vida,
Ou pelo menos me fizeram acreditar nisso,
Estou velho e fraco e feio,
Salomão, somos um e outro?

Porque agora eu me sinto roubado,
Me sinto traído e pouco querido,
Me sinto mal.
Sou a reencarnação do dono dos porcos
Que vivia próximo a um cemitério onde estava acorrentado o louco, o possesso do vilarejo,
Lembro-me como se realmente tivesse vivido aquilo,
O assassinato vil dos meus quase dois mil porcos, ordenado pela boca do próprio senhor filho do deus em pessoa e espírito santo.
E os meus porcos endemoninhados, tão inocentes, condenados ao suicídio no abismo do inferno.

É assim que estou traído.
Eu que nunca fiz o mal,
Eu que era um inocente suinocultor,
Atingido pelo próprio santíssimo na base de usa profissão,
Roubado dele o nome de seu trabalho.

Estou com essa marca na alma,
Esse ressacado tumor na minha corcunda,
Estou aleijado,
Uma marca como essas não se apaga,
Mas perdura vida após vida,
Mantendo-se em mim e em tudo que eu chamar eu no futuro das minhas próximas encarnações.
E este poema é a minha forma de dizer sim.

Sim, eu perdi, mas há tanto para perder que nunca vou parar.
Sim eu sinto essa inveja e essa raiva,
E esse odor da madrugada e do copo, há tanto esvaziado...
Ah, Hamlet... O nosso destino...

Quem verterá lágrimas por nós, meu querido?
Quem?

Tito de Andréa
2011


terça-feira, junho 21, 2011

Prece

Me ensine, Senhor, a arte de esconder lágrima e vício
Dá-me, senhor, o dom de soprar fumaça para dentro,
De manchar só a minha roupa e deixar, livre de pecados, de quedas, de nódoas e ranços a roupa do próximo e a aparência exterior,
Deixa-me, Senhor, aprender o oficioso e cansativo artesanato dos falsos.

Me ensina, Senhor, a ter a impavidez do monte que, mesmo com fé, se permite não lançar-se ao mar, mesmo quando o mar já tiver invadido todo o meu interior,
Mesmo quando tudo em mim for mar,
Quando eu mesmo for vale de sombra e morte,
Quando minha face interior for choro e ranger de dente,
Quando eu me arder num inferno particular, permita Senhor o inferno particular, permita o mar, permita a perdição e me ensine a sorrir.

Não me proteja, Senhor, pois o que eu mais desejo é essa lama carnosa e humana de onde tiraste o bisavô desavisado.
Essa terra fértil e lodosa onde o jardim foi plantado e que deu de comer à árvore da morte.
Não me proteja, Senhor, de mim ou de ti, mas, antes disso, lança sobre mim teus rancores.
Deixo-me ser Jó,
Entrego-me ovelha risonha, escarnecedora, com lã enlinhavada e suja de folhas e espinhos,
Permita tudo o que estiver escrito, Senhor, permito.

Mas me ensine, a ter o poder de, em mim, dançar uma festa quando dentro ardem velas de enterro.
A alegria de estar morrendo diariamente, o controle da terra cheia de magma por dentro, toda líquida e molecente por dentro, toda ela um rio quente e fluído por dentro, mas jamais por fora, dá-me senhor, o controle que tem a terra.
Dá-me as pernas e as mãos de um homem que já cansou.
Dá-me os ombros e os sovacos de um dos milhares de mendicantes do mundo.
Dá-me as virilhas das putas,
Os pés dos santos da rua,
Os cabelos dos dementes,
Dá-me, Senhor, o que tiver de pior.

Os fogos do meu rosto,
O suor da minha face para deixar a terra fértil,
E me dá de comer esse pomo de sal que brota da árvore que plantei.
Eu aceito, permito e desejo o pior.

Eu sinto o cheiro.
Dá-me, por fim, a frieza do mar, que é uno mesmo quando chove e cresce.
Que é uno mesmo quando afoga e penetra, sem convites, casamentos e velórios.
Que é uno quando afoga aqui e, ali, é leito.
Que é uno quando dividido em tantos, que tem nele a tua natureza de Deus de ser muitos e ser um.
Dá-me a divindade do mar, que é diferente de ti, pois sabe de mortes que desconheces.
Dá-me a divindade do mar que é diferente de ti, pois é vivo.
Dá-me a divindade do mar, que sofre e se dói e destrói a tudo que está no caminho, mas sempre calmo, mesmo quando destrutivo, mesmo quando não calmo.
Dá-me a divindade do mar e me abandona,
Em nome de todos os nomes,

Tito de Andréa

sábado, maio 28, 2011

Sem lágrimas, mas com muitas palavras

Eu não acredito em nada disso, veja, ouça, deixe-me dizer, deixe-me recompor o discurso, desdizer, torná-lo outro, infectá-lo comigo, mostrar a farsa. Eu repito: não acredito em nada disso, nada daquilo, eu não acredito em nada. Ouça aí, sente aí, sinta, carinha de anjo, vá só ouvindo, mesmo, mas não se preocupe, vá sentindo, não detenha sua cara de nojo, não impeça a face de mostrar, não segure o estômago, isso eu posso aguentar. Eu não preciso do seu respeito, do seu mesquinho reconhecimento, dessa coisica quase que nada que você leva aí junto ao peito, no lado onde se guardam, nas roupas mais finas, o bolso, onde você leva o que quer que se leve para dividir com aqueles que você ama, àquelas a quem você dá esse amorzinho mesquinho, por isso eu não me interesso, o que eu quero são as suas orelhinhas, meu querido, eu estou de Marco Antônio aqui, Marco Antônio shakespeariano discursando sobre o cadáver do meu próprio Júlio César tendo sido assassinado pelo meu próprio Brutus-eu. Tá ouvindo, meu bem, sou os três personagens principais dessa tragédia onde você é só o público, a crowd de romaninhos famintos e chorantes, percebe, pescou aí, pois pesque, arme sua vara com a menos atraente das iscas, a menos colorida delas e deixe deslizar verticalmente para dentro do rio, esse rio de sangue, de baba, de merda, tudo misturado, pegue aí, desse rio-meu, desse rio que eu estou te dizendo and lend me your ears, my dear. Me deixe falar, essa é a minha vez, é chegada a hora, a minha hora de dizer que tudo o que foi dito antes era uma mentirinha mal contada, daquelas que a gente ouvia quando era criança, ou quando amava alguém e só precisava ouvir o que precisava ouvir e tinha sempre um outro pronto pra mentir pelo bem do tudo estará bem amanhã. Cada sorriso meu, cada palavra, cada traço uma farsa, uma comédia essa tragédia, mas não divina, com perdão do trocadilho dantesco, divina não que eu não mecho com isso aí, que disso aí eu quero distância, meu negócio aqui te é dizer que foi tudo uma farsa, mas sem usar a palavra máscara, não vou usar tuas palavrinhas bobas, nunca usei máscaras, quando criança tentei, mas cheiravam a plástico barato e sempre me desagradou a respiração quente que voltava pro meu rosto da máscara. Guarde as lágrimas, meu bem, engula o choro, engula o choro e me diga, depois, ainda não é sua vez de falar, me diga o gosto que ele tem, para que eu possa ouvir e já não esquecer, não engolirei mais choros, nem represarei lágrimas, mas engula aí o seu choro que vai chegar a hora dele, não falta muito, vai chegar a hora de se afogar em lágrimas, ainda não, calme que agora é a hora da minha palavra, do fim dos sorrisos, eu não espero precisar sorrir jamais, não espero precisar sorrir quando terminar: não vai terminar nunca: eu vou seguir falando, vou ao inferno falando, sem sorrir, sim, cada sorriso foi uma traição, uma traição a mim, eu traí a mim com os sorrisos, com as conversinhas, calma, cale a boca, eu me traí com aquelas provas, cada vez eu que eu fiz uma correção, cada vez que eu reescrevi uma palavra, cada vez que eu me desculpei, retiro tudo, retiro tudo, apague tudo. Apague tudo, das suas fotos, das suas lembranças, das atas, dos autos, das bulas, apague as estrelinhas do seu céu, o sol sorridente da infância desenhado sem talento algum sobre a casinha com telhado porcamente pintado de vermelho e com um papai e uma mamãe e um cachorrinho sorrindo, todo mundo sorrindo, isso, apague, pode chorar agora, viu, não demorou, pode chorar e use suas lágrimas para borrar tudo, para distorcer tudo. Eu quero inaugurar aqui, o navio do teu esquecimento do meu sorriso, do meu gosto amargo cada vez que cumprimentei alguém com fingida simpatia, do meu próprio esquecimento, do apagamento, do esvaziamento, da morte infinita, do espaço vazio eterno que há entre um papel e outro, escolha aí o mais fino dos líquidos inflamáveis para atear fogo à minha pilha de palavras antigas, aos meus livros lidos com aquele tédio de quem está indo para um cadafalso moroso. Lance fogo a tudo enquanto ergo minha taça vazia de tudo, mas cheia de descrença para brindar suas lágrimas, para brindar seus músculos tesos, seus tendões odiando, seu coração bombeando mais sangue, para brindar à derrota que eu te nego, te nego o poder de sair derrotado, vença, meu bem, ganha, sobreponha-se, subjugue-me, isso meu bem, vença, vença, me esmurre, eu não vou parar, use o nó dos joelhos assim, eu não vou parar, eu vou sangrar, sim, mas não vou parar, não vou parar, não vou sorrir, isso, os cotovelos, o fio dos dentes, isso, aplique sua ira, eu não vou parar, use a lâmina das unhas na minha carne, no pescoço, atinja com precisão médica a veia que alimenta a cabeça, eu não vou parar, pise, pise com essa força, chute, cuspa, sinta, eu não estou sorrindo, eu não estou parando, eu nunca pararei, eu não preciso vencer, eu posso, de boa vontade, ser vencido, eu não vou parar, eu não vou parar, eu vou falar para todo

Tito de Andréa

2011

terça-feira, maio 24, 2011

Poema-biografia-afásico ou Blues da total incompetência ou Da tragédia de todo poema ou Poema-biografia-Rir-de-si

É preciso, o poeta pensa, é preciso escrever uma faca,
Mas não uma faca comum, uma faca cega de tanto cortar,
Uma faca com um olho, uma faca morna.
É preciso, ele pensa, ele pensa uma mão cheia de precisões,
Ele pensa os olhos cheios de ouro,
Ele pensa um veneno escorroso e corrosivo nos suores,
Ele pensa secreção, escorpiana cauda,
E morre-se.
Ele começa.
Impera a necessidade,
É preciso, ele repete, sempre.
– É preciso é preciso é preciso é preciso é preciso é preciso.

O poeta está nu,
Violentamente despido,
Imundo de suores e odores,
O poeta está e não escreve.

É preciso cantar, de alguma forma,
De algum modo, sem - que se diga agora, como me indicou um poeta amigo de certo professor Doutor - utilizar-se de adjuntos adverbias, sobretudo aqueles que tem como função demonstrar modo, repito, é preciso cantar de algum modo essa incompetência carnosa que ele propaga.

Algo ele propaga. Mas não comecemos o coro de risos.
Ainda não.

Há de chegar a hora de chamar os conhecidos, os amigos e as animosidades para dar seu depoimento.
Sim, pois há sempre a hora do juízo onde meia dúzia de amigos persistentes receberão voz contra todos os outros.
Todos os outros que ficaram cansados,
Todos os outros que não tiveram mais o que dizer,
Pois é bastante comum na humanidade esgotar a possibilidades de frases novas a dizer para outra pessoa e o silêncio, ao contrário do que prega a voz vigente, não diz muita coisa, é preciso que se diga.
Todos os outros que não gostam, que odeiam ou que implicam.
Hão de ser muitos.
Mas não ainda:
Ainda não.
Ainda não.

Antes de tudo é importante contemplar certos aspectos de sua nudez muda.
Adjetivos ainda são permitidos, ele pensa e sorri.
Ele pensa e sorri.

Mas poderia dizer que o lar é onde se guardam corações, ou quando, como disseram depois. E poderia maldizer o sol, como é de seu feitio, ou, num momento mais infantil de velado retorno à mediocridade da adolescencia, essa esfinge derrotada, Édipo vencendo seu complexo e fazendo a mãe de Freud tão infeliz... Ele poderia falar da morte.

Mas ele está nu. Ele não tem nada a dizer e nem é meia noite nem é meio dia.
A hora do lobo passou e, quem sabe certa quantidade de álcool ou a escolha musical adequada possam ajudar um pouco... Talvez a mulher nua possa ajudar um pouco, talvez a intensidade correta... Aplicada à vontade correta, talvez a vida possa ajudar um pouco...
Mas não.

O poeta está nu.
Para um pouco para pensar em destruir a si de formas trágicas,
Desvela-se para os mais próximos,
Chama-os para presenciar sua desgraça exterior - a nudez - e guarda, mascaradamente, o que persiste dentro para outra hora, outra hora quem sabe mais feliz, outra hora quem sabe menos morta, tanta mentira...

Ele guarda para outra hora. Uma hora onde ele possa sentir as trombetas dos anjos e os aguilhões dos demônios.
Uma hora com Stravinsky e a primavera,
Uma hora com Mozart,
Com Beethoven,
Com Bartók,
Com Chopin.
Com o diabo que o valha para salvaguardar um lugarzinho no inferno para uma rápida estadia que valessa a Rimbaud uma coisa qualquer.

Uma última pérola que pudesse trazer de lá, do inferno, da profundidade mais esquecida, no canto menos cantado, com tudo o que está ao redor,
Com todos os Deuses mortos, enterrados - em vala comum ou não –
Com todos os homens mortos - suicidados ou não –
Com todos os diabos - sorridentes ou não –
Com tudo que puder, ele espera e faz suas libações e tenta.
Com fôlego – ou não –.

Oremos, pois não é possível.
E já não será possível depois.

Mas é imperativa a tentativa frustrada,
É imprescindível que se debata,
E que se esmurre,
E tente mergulhar,
E vá mais fundo do que possa,
E que tenha uma embolia na alma,
E que suba velozmente, com os pulmões clamando por ar,
E que jamais o encontre novamente.
E que não possa mais, pois já não é possível, pois está nu e morto.

É importante - ele pensou pela manhã quando tudo era novo e dia não fedia a guardado - estar meio morto sempre, para poder melhor saber-se.
É preciso estar meio morto sempre para melhor sentir.
E rasgou-se todo em papel velho de versos amarelos e terríveis.

Oremos, pois já não é possível,
Mas é preciso que ele saiba como vociferar sua incapacidade
Que escrita é incapacidade e não é possível dizer nada.

Mas ele guarda, ele guarda a incompetência para si.
Ele a tem e a ama e a cuida.
É preciso cuidar das coisas que se tem, ainda mais quando não se tem muito, ainda mais quando não se tem nada e ele espera o inferno que virá, com um Van Gogh de braços abertos e sem orelhas para ele ser,
Ele espera o inferno inteiro para poder ir buscar o mais baixo tesouro do mundo.
Ele espera atingir algo,
Nem que seja um dente partido de tanto ódio
Ou
Uma chuva inversa que esbraveje conta as núvens.

Mas o sol não é bom para ele e ele disse não para todos.
Mas o lar não é onde o coração está – nem quando, ouviram –
Não há mais coração,
Não há lobos em suas horas,
Não há.

Acabou.

Tito de Andréa

domingo, março 27, 2011

Muito tem se falado da relação do rio com suas curvas


Eu já não venho conseguindo dormir direito e acordar, toda noite de sono tem sido uma morte estranha e violenta, um aborto de mim mesmo no útero da noite e do sono, quando durmo já não acordo e, quando acordado não volto jamais a dormir, de maneira que estou sempre dormindo e sempre acordado, acordando num mundo do nosso onde sei ainda estar dormindo e seguindo, eternamente acordado para dormir do desespero dos olhos convulsivos fechados para despertar novamente, sem ter dormido, num outro mundo, sempre, sempre, sempre e sempre cada vez mais fundo até que de volta para a superfície,e m algum momento, sim, de volta sim, alguma hora há de acontecer, executam-se círculos o tempo todo, de volta a superfície depois de uma longa incursão ao centro, indo mais fundo até desembocar do lado de fora, de volta, enfim, não sem perdas, mas para gritar com os pulmões cheios de ar que se está vivo e acordado e pronto para o ataque do novo que se impôs durante a ausência de sono eterno que se deu até mesmo enquanto se estava acordado, se impondo lentamente como a água faz, não numa enchente que é quando a água é pura força sem ritmo e sem pudores piedosos, mas assim como o riozinho se impõe, o novo se imporá, como o pequeno rio diante da casa de um homem que não está atento e o rio vai bebendo das chuvinhas que caem e nem dizem muito, a mãe nem recomenda proteções agasalháveis e a chuvinha engorda o rio e um dia o homem está separado da outra margem por um rio imenso, um respeitável rio, um rio oceânico que o exclui, que se não o impedir de gritar, certamente o impedirá de ser ouvido por outra pessoa e o homem precisa agora aprender a conviver com a solidão e com o rio-novo que se gerou durante o sono e durante a vigília pouco vigilante, até o dia em que o rio, ainda sorrateiro e silencioso como muitas vozes caladas, penetra na casa do homem, este espaço sagrado, esse santo lugar, e o afoga e o leva no seio para o nutrir e o reintegrar ao que havia perdido e eu então acordarei e serei como o homem cheio de disposição e não me comportarei como o outro da narrativa que viu o rio-novidade instaurado diante de sua porta, como um desastroso presente e a ele deu as costas, não, não eu, eu não, eu arrebatarei o ar e para gritar a vida à vida e atirarei meu corpo no rio, sem chamas, sem choro, sem rezas, sem coração para ser enterrado no primeiro meandro e vencerei, com plantas presas ao cabelo e certo peso nas roupas, tendo certamente perdido os sapatos e as meias atingirei o outro lado do rio, tudo frio na outra margem, para encontrar um cemitério, o cemitério onde meus amigos, que morreram todos durante o sono, o meu sono, estão enterrados, e este seria um novo rio, um outro desespero, uma nova superposição, imposição da morte nas arestas esquinosas dos meus pés e será preciso não ter ansiedade, saber lembrar da ordem natural do mundo que prega com vivenciada verdade e estudo observado que aquele que dormem devem acordar – em algum momento, a menos que morram e ainda assim a regra é ainda mais verdadeira – que aqueles que dormem devem acordar num mundo completamente novo e solitário com tudo anterior morto e faz parte desse universo onde escolheu-se nascer e é preciso assumir a responsabilidade de suas escolhas e os amigos mortos não fariam mesmo grande falta, pronto, então, está vencido o novo e é preciso saber-se mergulhar nos rios, pois serão muitos com muitas curvas e muitos sonos e novos despertares e velhas mortes e toda noite o mesmo aborto silencioso e torto até que um dos rios vença e eu me afogue e retorne ao fundo do sono de onde saí e para onde retornam todos mesmo que ai retornar para lá, seja como se decidiu chamar esse lá, um lar, um outro plano, outro planeta, o fato é que ao retornar para o lá já não se é nada, ninguém se é mais no fundo do rio, tragado, fumado, tudo esquecido, mesmo em outro mundo, mesmo em outro lugar se está morto, e lá não se poderá encher o peito de ar e gritar a morte à morte, nem vencer nada, mas não se pode estar morto ainda, não, ainda não, que ainda estou dormindo e me adiantando muito na história que conto enquanto estou acordado e do que farei quando estiver acordado, e estou falando tendo consciência da impossibilidade desse pensamento, da impossibilidade de pensar em algo que seja realmente impossível, mas estou eternamente rodeado pelo paradoxo, roendo as paredes do impossível, assistindo lentamente enquanto durmo ou enquanto desperto o lento avançar do rio que se aproxima pronto para instaurar uma nova ordem, afogando os amigos que nunca tive, mas bem poderia ter tido em uma ocasião diferente, tivesse sido eu mais risonho, tivesse procurado, tivesse mantido uma ordem entre acordar e dormir e dormir e acordar e não trocado as mãos pela cabeça e os pés pelos rins ou qualquer outra parte cambiável do corpo que crie uma imagem desesperada que afasta os iguais porque torna-os imediatamente diferentes, então poderia ter tido amigos em uma vida outra ou em uma morte outra, pois estou vivo e morto, eternamente morto por estar vivo e condenado à morte, assim como se está acordado e condenado ao sono, e pedir uma mudança é uma revolta inútil há de ser tragado pelo rio, é impensável uma mudança que toque o coração, troque um acorde, mude as cordas, a nodocorda, aquela do pescoço, aquela do violão, que parte quando muito tesa e não soa nada quando frouxa, e que não pode mudar sua natureza, não pode querer mudar sua natureza, de estar acordado e de estar dormindo e assistindo a chuvisquinha que cai tamborilando no rio que já aumenta, e não posso gritar, ou posso gritar e não posso ser ouvido, o que dá no mesmo, pois a chuva intercepta minhas palavras e as usa para o rio crescer, mistura à lama minha palavra, escorre minha frase rio adentro, criando curvas, cavando meandros, afundando barquinhos de papel das crianças da outra margem, os filhos dos amigos que se afogarão logo, logo e nem sabem porque não podem ouvir ou não sabem ouvir o grito que chega junto com o rio, e só posso esperar para que seja minha vez de acompanhar esse fluxo que as minhas palavras agora acompanham de ser eu a me fundir ao rio, de me deixar levar, de estar úmido e unido a tudo, com o peito risonho e arfante, infantil, para unir-me aos amigos mortos que nunca tive, para unir-me aos filhos deles e despejar os meus filhos junto aos deles, sem um esforço grande, mesmo jamais tendo tido um esforço realmente grande, o que não muda nada, as coisas tendem a continuar as mesmas isso não gera absurdos, sem jamais ter conhecido uma revolta, unido sim, agora sim, ao rio e à matéria-novidade que compões suas cordas vibrantes e imutáveis que compõem seus átomos vibrantes que compõem suas moléculas vibrantes que compõem seu leito vibrante e que agora me vibra e me toma e me leva.

Tito de Andréa

2011