terça-feira, junho 21, 2011

Prece

Me ensine, Senhor, a arte de esconder lágrima e vício
Dá-me, senhor, o dom de soprar fumaça para dentro,
De manchar só a minha roupa e deixar, livre de pecados, de quedas, de nódoas e ranços a roupa do próximo e a aparência exterior,
Deixa-me, Senhor, aprender o oficioso e cansativo artesanato dos falsos.

Me ensina, Senhor, a ter a impavidez do monte que, mesmo com fé, se permite não lançar-se ao mar, mesmo quando o mar já tiver invadido todo o meu interior,
Mesmo quando tudo em mim for mar,
Quando eu mesmo for vale de sombra e morte,
Quando minha face interior for choro e ranger de dente,
Quando eu me arder num inferno particular, permita Senhor o inferno particular, permita o mar, permita a perdição e me ensine a sorrir.

Não me proteja, Senhor, pois o que eu mais desejo é essa lama carnosa e humana de onde tiraste o bisavô desavisado.
Essa terra fértil e lodosa onde o jardim foi plantado e que deu de comer à árvore da morte.
Não me proteja, Senhor, de mim ou de ti, mas, antes disso, lança sobre mim teus rancores.
Deixo-me ser Jó,
Entrego-me ovelha risonha, escarnecedora, com lã enlinhavada e suja de folhas e espinhos,
Permita tudo o que estiver escrito, Senhor, permito.

Mas me ensine, a ter o poder de, em mim, dançar uma festa quando dentro ardem velas de enterro.
A alegria de estar morrendo diariamente, o controle da terra cheia de magma por dentro, toda líquida e molecente por dentro, toda ela um rio quente e fluído por dentro, mas jamais por fora, dá-me senhor, o controle que tem a terra.
Dá-me as pernas e as mãos de um homem que já cansou.
Dá-me os ombros e os sovacos de um dos milhares de mendicantes do mundo.
Dá-me as virilhas das putas,
Os pés dos santos da rua,
Os cabelos dos dementes,
Dá-me, Senhor, o que tiver de pior.

Os fogos do meu rosto,
O suor da minha face para deixar a terra fértil,
E me dá de comer esse pomo de sal que brota da árvore que plantei.
Eu aceito, permito e desejo o pior.

Eu sinto o cheiro.
Dá-me, por fim, a frieza do mar, que é uno mesmo quando chove e cresce.
Que é uno mesmo quando afoga e penetra, sem convites, casamentos e velórios.
Que é uno quando afoga aqui e, ali, é leito.
Que é uno quando dividido em tantos, que tem nele a tua natureza de Deus de ser muitos e ser um.
Dá-me a divindade do mar, que é diferente de ti, pois sabe de mortes que desconheces.
Dá-me a divindade do mar que é diferente de ti, pois é vivo.
Dá-me a divindade do mar, que sofre e se dói e destrói a tudo que está no caminho, mas sempre calmo, mesmo quando destrutivo, mesmo quando não calmo.
Dá-me a divindade do mar e me abandona,
Em nome de todos os nomes,

Tito de Andréa