terça-feira, maio 18, 2010

Des-

Escuta, escuta por favor. Tudo isso que eu te disse deve ser esquecido. Entende? Você entende? Eu estou aqui cheio de lágrimas e punhos pedindo. Esqueça. Escute. Só escute. Ouça. Não precisa entender. Não precisa lembrar de nada. Eu estou aqui. Agora aqui. Morto aqui e aqui eternamente vivo. Imutavelmente vivo. Não. Não afaste a mãos ou os pés. Deixa aqui a mão. Deixa aqui. Não falarei mais. Não falarei nada. Serei silêncio. Sim. Escute apenas o silêncio. O silêncio entre uma palavra e outra. O silêncio branco do papel. Entre uma letra e outra, silêncio. Silencio. Vazio e silêncio. Olha pra mim. Olhe para mim. Eu. Eu aqui cheio desse branco silêncio. Desse branco silêncio e de muitos outros. Silêncio de muitas palavras. Silêncio de rio cheio de chuva. Você já foi ao rio? Já viu o rio correndo? Já ouviu o grito de tudo? Tudo não grita, Mêandro. Não existe grito. Não existe voz. Só tato. O tato do toque no toque. Do ar arranhando os ouvidos e arando a terra de dentro. Dentro, Mêandro, é ainda mais tato. Tátil. Mas espere, espere e escute. Escute. Queime. Queime as minhas cartas, queime os poemas, queime todos os livros. Queime a mim. Nada gritará. Não gritarei mais que estalos. Rompimentos do fogo e de suas muitas outras coisas. O fogo não gritará. Escute. Só escute. Eu sou esse velho aqui. Esse velho. Babel toda babada. Velho babão, escroto. Confusão de sons. Gorgolejo de baleias bebendo. Ronronar de tigres. Não vá embora. Raiva? Raiva, Mêandro? Raiva é combustível, não precisamos mais disso. Não precisamos de combustível para movimentar os braços, Mêandro. Agora podemos cair em qualquer vala, mijar-nos todos, sujar tudo e ficar lá. Inanição. Desapego. Desapego? Menos que isso. Ainda menos depois. Cada vez menos. Apenas lacuna. Que o único ruído seja os dentes. Os dentes rangendo. Rangendo no fundo da vala. A língua? Que seja mastigada. Que seja devolvida. Engolida, cuspida em pedaços, em pequenos pedaços que não dirão nada. Não precisamos disso. Terra é a minha palavra. Terra é o meu silêncio. A vala cheia de terra. Cheia. Cheiíssima. Cheiíssima de mim. Mêandro, preciso só do seu esquecimento. Não é nada. Nada. Todo texto é pretexto. Todo texto é rascunho. Eu quero a sua rasura, seu borrão. Sua boca cheia de saliva? O que é saliva, Mêandro? O que é saliva para quem tem muito mais que isso? Que tenho a boca cheia e transbordante de muito mais que isso. Escute. Só escute. Queime tudo. Repito e esqueço. Queime todas as cidades. Mude de nome. Chame-se Nero. Chame-se Apolo. Chame-se Prometeu. O que é um nome no mundo, Mêandro? Queime tudo e espere pra ver ser algo grita. Olha pras coisas, Mêandro. Olha pra mim. Em chamas seria diferente? Ponha fogo nas florestas. Em chamas os desertos. Em chamas os mares. Em chamas as nuvens. Centenas de cavalos inflamados, as palavras. Ateie fogo aos rebanhos dos homens. Nos homens. Suas casas. Crie asas e mude de nome. Chame-se Pegasus. Ícaro. Saia voando. Crie asas e abrace o sol. Em si? Escute. Escute, Mêandro. Só escute. Vá escutando e esquecendo. Esquecendo. Eu quero que você esqueça. O que eu quero de você é que você esqueça tudo. Papéis, sons e imagens. Fotografias. Tudo frio. Tudo frio no fundo do rio. Escute. Só isso. Nem isso. Menos ainda. Veja. O que são as coisas. Toque seus nomes, Mêandro. Toque-os. Troque-os. Você cerra os punhos. Você cheio de raivas. Esqueça. Contra mim você aponte seus exércitos. Me espinhasse e me transcorra. Trespasse. Perpasse. Eu caminho. Eu estrada. Quando terminar o ódio me seja. Eu poeira. Eu restos. Me veja. Nem me importo. Sou isso. Esquecimento. Aqueça. Deite comigo. Me cuspa. Se eu choro aqui é porque dentro arde. Se soco a terra é só pelos sons. Nem me movo, nem falo nada. Nem morro. Nem mato. Minha tocha é meu nada. Nada não. Tudo em vão. Eu no vão do chão. Mas de ti eu não espero um mar de lobos, Mêandro. Só espero uma lua branca. Espero áspero. Superfície. Troque de nome. Se chame Dionísio. Se chame Qualquer. Se chame Outro. Afogue os soldados. Agora. Apague tudo. Se apegue a tudo e ateie fogo a si mesmo. Deus nem te ouve nem te vê. Sente. Nem isso. Menos que isso, Mêandro. Deus é combustível. Cristo em cruz. A César o que é. De deus só sei. Mêandro, não proclame com o vão da boca. Em vão. Cão. Não traga aqui o que aqui não pertence. Não temos temor. Não temos tempo. Trememos. Deus, Mêandro, é a minha ânsia e eu a vomito e ela passa. Passou. E eu quero de ti é que você esqueça. Desdigo tudo. Esqueça. Esqueça e veja. Aquiesça. Esqueça e seja. Sempre além. Nunca amém. Ame e que assim seja. Esqueça. Fogo e castelo. Palavra é oco e ocos estamos. Somos. Nos que somos, estamos. E dentro e ao redor é silêncio. Prometa e esqueça. Veja. O resto sou eu.

Tito de Andréa