terça-feira, outubro 13, 2009

Sem título ou poema-biografia-beco-sem-saída

A cidade onde moro é como um travesti de fartos e duros peitos, com ancas de cavalo e bunda lisa mostrada por um short cor-de-rosa-desbotado. É um travesti com bijouterias enegrecidas e sapatos de salto alto de detalhes dourados que anda impávido e soberano pelas ruas. Seu rosto de homem forte com barba de três dias por fazer esconde uma boca suja sem dentes. Ele te arrasta para uma rua podre com gatos empoeirados de olhos vidrados e te ameaça com uma navalha enquanto exibe as gengivas úmidas e desagradáveis.

A cidade é esse amontoado enganador cheio de ocos, como marcas de espinhas a muito já espremidas que deixam sua cicatriz. Esse oco fibromatoso cheio de medo, a cidade onde moro.

Esse ranger de dentes de engrenagem, esse ruído solitário do ônibus cheio de morte, essa vadiagem das ruas vazias e escuras com amarelo de sobra para exibir nos olhos. Um cheiro de sofá velho, cama de sexo para mendigos viciados. Um cheiro de fome mal dormida e um extremo qualquer coisa que se perde.

Esse travesti sem dentes que exibe um rijo falo depilado e sorri.

É um homem sentado no meio do nada morrendo de sede e pensando em diamantes telepáticos. Um delírio de saciado. Uma dor nos lados da cabeça que faz você pensar que tem uma doença grave acontecendo dentro. Sempre dentro.

Ela se empurra garganta abaixo. Garganta a dentro. Corpo afora. Preenche com dores e casebres mofados. Engorda sua ansia com cães leprosos. Sacia sua sede com raiva de ratos. Importuna seu peito com cacos de vidro. Entope suas veias com notas velhas e moedas para os pobres. Entulha tudo com lixo. E ri toda, a maldita, a travesti engordurada e sem dentes.

Os prédios riem-se quando se passa diante deles. Os prédios prontos para morder. Prontos. Com escárnio colorido e manchado de água e mijo de animais desdomésticos. Os prédios gargantas abertas e degoladas. Os prédios sutura. Os prédios riem-se todos quando se passa diante deles e se pode sentir. Eu sinto.

Eu sinto muito.

E pode-se andar de dia e quase mastiga o cinza. E pode-se tocar o cinza. E se é cinza. E se é um travesti de ancas duras e saliva rubra.
Que se pode fazer?

- A cidade onde morro.

É um mausóleu com nome de Senhor Deputado Fulano. Com pontes que não vão a lugar nenhum. A cidade é dois milhões quatrocentos e setenta e três mil seiscentos e quatorze pontes que não ligam nada.

Dois milhões quatrocentos e setenta e três mil seiscentos e quatorze mausóleus com o interior morto e podre. Dois milhões quatrocentos e setenta e três mil seiscentos e quatorze travestis doloridos e enluarados.

A lua da cidade onde eu moro. Sorri. Tudo sorri para mim quando passo e tudo me mata porque em todos há uma guilhotina sorridente. Na horta de todos está o repolho podre pronto para atirar ao criminoso. No dedo de todos está a marca para manchar o companheiro. No estômago está a fome que consumirá o amado. Na pele está o ranço que enojará o próximo. Nos olhos está o vermelho amarelado que ao outro causará arrepio. No cinza está as cinzas do amigo. E tudo se completa enquanto se comprime e ri a maldita.

E tudo se mastiga. Eu me mastigo. O travesti que risca o chão, a parede e o rosto de todos com a mesma facilidade se mastiga. O idiota que ri se mastiga. O ônibus lotado que ameaça virar a toda esquina se mastiga. E nos engolimos. E um engole o outro e um digere o outro e tudo se bostifica. E tudo morre.

E tudo morre.
E tudo morre.
E tudo morre.

O lar é onde o coração está:
Amém.

Tito de Andréa

quinta-feira, outubro 08, 2009

Cotidiana IV

Luís Henrique levantou-se às 20:43 da poltrona de seu apartamento, caminhou até a janela, olhou para a rua e descobriu que estava feliz.

Cotidiana III

Armando desligou o telefone após dizer a Maria Lúcia que nunca mais ela o veria novamente se era isso que ela desejava. Após andar aleatoriamente pela casa por quinze minutos, Armando tomou um veneno de ação lenta e – por não ter um carro – foi tomar um ônibus com o intuito de morrer na porta de Maria Lúcia.

Apanhou o ônibus errado. Morreu às 15:53 no Terminal da Parangaba. Seus familiares reconheceram e recolheram o corpo que foi enterrado no dia seguinte às 16:42.

Maria Lúcia não ficou sabendo da morte, e – feliz - achou que Armando estivesse cumprindo sua promessa.

domingo, outubro 04, 2009

Cotidiana II

Eulália tinha 76 quando morreu no caixa rápido do Banco do Brasil às 14:47 de uma terça-feira diante da única máquina funcionava naquele shopping. Logo uma fila imensa se formou. Durante as quatro horas que levaram até alguém notar que Eulália estava morta uma quantidade imensa de palavrões foi proferida, o que não mudou nada.

Tito de Andréa

sexta-feira, outubro 02, 2009

Cotidiana I

Teobaldo sempre quis andar nas primeiras cadeiras do ônibus, as altas destinadas a idosos, gestantes e deficientes. Quando criança sua mãe o proibia por não se encaixar na descrição e Teobaldo nunca se sentiu confortável nas cadeiras preferenciais.
Passou toda a vida esperando envelhecer para ter direito a sentar-se nelas. Completou 65 anos e no dia de seu aniversário foi tomar um ônibus.

Entrou pela frente e ninguém lhe cedeu o lugar.