quarta-feira, dezembro 27, 2006

Vivente

Levanta ondulante e vai à janela. À vista. Ao mar.
Levanta ondulante e com pés nus toca o chão. Tudo é tão quente. Sempre.
- Abre a janela e vê o vento partindo.
Partindo-se. – Me. – Nos.
Indo.
Vindo.
- Abre a janela e vê a vista que vive.
O vento parte.
O ventre abre.
O bebê nasce.
E uma multidão de fetos feios está em meus dedos.
Pesadelos natimortos. E de novo eu vejo a cegueira de olhos aberto.
- Divide as flores para os que mais amam espinhos.
- Divide isso com o resto dos teus.
- Irmãos, pai, mãe e divindades.
- Divide isso para com todos.
Vinho em taças limpas para bocas sujas.
Toca o vidro empoeirado com as mãos quentes. Frias. Mornas?
- Vê o vento que parte e reparte as sobras do que chamou de amanhecer.
- Vê a vida que vivia no ventre da puta?
Os filhos do mundo são filhos meus. Eus. Teus.
Acorda gotejando e se enche e esvazia como uma maré.
- Tua lua é maior e amarela.
Levanta ondulante e toma na mão um monte de imagens que nada valem.
- Toma os pesadelos do dia anterior e faz uma cidade.
Agora que vejo a cegueira me tocando.
O feto caminha e me toca as pernas.
Meus pelos arranham minha pele por dentro e ele caminha pelas minhas vias.
Ele encontra no meu ventre tua casa e vai nascer em breve.
Ferro quente e a marca de meu senhor nas costas.
- Toma o castigo e faz-se merecido.
Ele nasce pelos cantos e é filho de meu suor.
Tomo em meus braços e ele mama de minhas lágrimas.
- Toma o bebê-que-nasceu-do-pó no colo.
Vê a vida que vive e viverá?
Vê?
- Se agarra em teus braços até notar.

Vê a vida que vive e morrerá?

Levanta ondulante e come a placenta do que era teu filho.
Animal.
- Come o bebê mulher.
- Come o fruto de teu ventre.
Nada mais justo.

Tito de Andréa.

terça-feira, dezembro 26, 2006

Pulsemim

Há um clamor em mim.
Ele bate e retorce,
Ele morde e escorre
Há um rito em mim
Milhares de tambores.
Febres vindas da Índia.

Há uma cruz em mim.
Um peso tardio e retardatário.
Ela pula e se arrasta,
Ela me rasga a pele e se agarra.
Milhares de pregos.
Chuvas vindas do Oriente.

Há uma noite em mim.
Ela arde e ferve
Ela come, vomita e bebe.
Milhares de cortes,
Um sonho vindo da China.

Há um navio em mim.
Ele corre e morre.
Ele se afoga e congela.
Milhares de lágrimas,
Um pranto vindo da África.

Há um mundo em mim.
Um mundo seco e natimorto.
Eu planto e nada cresce.
Um milhão de fetos.
Uma peste vinda do Egito.

Tito de Andréa

sábado, dezembro 23, 2006

Reencarnaceirado

O martelo bate... Bate... Bate... Minha cabeça lateja. Meus dedos tremem. Minhas mãos se fecham, meus olhos ardem. O martelo bate e eu me afogo.
- Levem-no para a cela, e façam-no pagar.
Não sei do que fui acusado. Não imagino o que me aguarda no mundo velho e feito de pedra para o qual me arrastam. Não sou culpado. Não sou culpado. Não sou culpado.
- Toma as paredes e faz delas amigas.
- Toma a grade e faz dela irmã.
- Toma a janela e dela tenha medo.
- Esse sol que vê. Esse sol que ama. Esse amor que come. Vai te matar.
Não sou culpado. Não sou culpado. Não sou... Não...
Sou.
Me disseram que aqui era onde o mundo virava de costas. Mas quem come terra sou eu. Quem anda de cabeça para baixo sou eu. Tenho oito patas e doze olhos. Tenho mil pelos e trinta unhas, Tenho dezenas de antenas e só uma pele. Setenta bocas e quarenta línguas. Aquele lá sou eu. Não sou culpado.
- Toma esse veneno.
- Toma essa cela.
- Toma meu mundo para ti.
Não queria nada que não fosse meu. Não queria nada... Não tenho nada. Queria só um pouco de ar para respirar. Um pouco de qualquer coisa para ser. Uma cela.
Não.
Não sou.
Sou inconsciente.
Inocente.
- Tranquem-no e não me façam ouvir seus gritos.
Gritos. Gritos. Gritos. Gritos.
Minha fala é esquizofrenia. Minha sala é demência. Loucura não.
Perdição.
- Cortem-lhe as unhas, e calem-me as vozes.
Levem-me as vozes.
Leve-me às vozes.
Tragam-me de lá...
Dormir e redormir e redobrar o sonho. O sono. O sonâmbulo que anda em mim. O trem que corre em minhas veias. A britadeira que fura meus olhos. A carne que entra em meus dentes. O ácido que escorre de minha saudável ferida.
Meu trapo está velho e sujo de pus.
Minha roupa está seca. Sangue seco. Coágulo vivo. Vivente. Penitente.
Vinte mil rezas para oitenta mil santos.
Um terço universal de mil anos.
- Dêem-lhe comida e algo para viver.
- Uma corda para amarrar a garganta, mas nada para se pendurar.
- Dêem-lhe o que não queria, e tirem o que não ama.
Não sou culpado. Não acredito em redenção.
Só acredito nas pedras em meu estomago e nos estômagos em meus rins.
Só acredito em morte e em vida antes de mim.
Só vejo cores. Nada de formar.
- Tirem-lhe o que não ama.
- Atirem-no.
Fogo.
O martelo bate. Amém.

Tito de Andréa

segunda-feira, dezembro 18, 2006

Vivo como um Deus morto.

Cato os restos em meus bolsos e espalho sobre a mesa. O rato ainda pulsa e suas patas se mexem em direção a toda parte. Partido de corpo e alma. Partido completo. Tiro de meus sapatos aquele sangue preto. Coágulos do intestino de um carrapato. Sangue sem matéria. Água. Tomo os pedaços de meus pecados e como-os. Frios. Como-os com fome, gula. Como-os com devoção. Aceita-os. Aceita esses nobres pecados, aceita minha perdição. Ergo minha refeição pecaminosa ao Deus que vive em meu estômago. Ele pula e se retorce. Meu arquiteto verminoso. Meu Criador parasita.
Toma meu inferno nos braços e nina-o. Ama-o. Ele sou eu. O rato por sobre a mesa sou eu. A ave morta de pescoço partido sou eu. Aceita essa lama que escorre de mim. Come-os também. Faz-me Tu. Ser-te-ei. Saber-te-ei. Como essa superior forma de vida e sou-me. Calo os ratos de meu esgoto. Calo as torneiras de minha língua. Leva-me de lá para onde estás. Faz de mim o teu rato e parte-me por sobre a mesa.
Prova com a ponta da língua esses pesadelos que te dou. Prova-os e me diz se estão quentes e bons. Usa-os. Ama-os. Ame-me.

Meu caloroso e servil Mestre. Faz-me finito ao infinito. Amém.

Tito de Andréa

terça-feira, dezembro 05, 2006

Assassínio

Minhas mãos tremiam... Tremiam... Não meus olhos, esses jamais ousaram tremer, sempre foram parados, não cegos, apenas firmados em um ponto dentro da alma de tudo. Meus olhos sempre foram parados, mas minhas mãos tremiam. Eu todo tremia. Minh’alma, minh’lama. Em minhas veias naquele momento corria o mais quente dos sangues. Corria verde e lento, fervendo minha pele e poluindo meus poros. Corria em mim um sangue ocre e fétido. Corria em mim o sangue de meu assassínio. Corre em mim um sangue feito de carne. Na minha carne corre mais carne, e nos meus ossos correm mais ossos e mim correm os meus temores pesados. Diabos. Que me carreguem para além de minha tumba branca, quero ser enterrado em uma cova rasa, para que logo que cavem possam encontrar meu cadáver retorcido. Quero ser enterrado ainda com um resto de vida para sentir em meus pulmões epilépticos um pouco de areia e água. Quero sentir o gosto do sangue enquanto mastigo minha língua. Quero o cheiro da minha carne podre por todo o quarto. Quero meu vômito estampado no teto. Meu sangue em suas casas. Quero minha alma, minha lama em todos os pedaços de mim. Pedaços espalhados por toda parte. Carreguem-me para longe de minha além vida. Meu assassínio ácido e corrosivo. Meu assassínio, minha vítima. Matei a vida que pulsava em suas veias e minhas mãos tremiam. Quero ser levado para o longe dos mortos. Meus ombros que são do tamanho do mundo que carreguem o céu e o inferno. Que abracem as corredeiras. Meus ombros que são do tamanho do homem que carreguem o sangue. Quero que me enterrem vivo. Quero ser um morto lépido. Quero ter o sorriso dos Sátiros. Quero ter mãos que tremem e olhos que ficam parados. Quero cometer o vil crime do assassínio. Levem-me amarrado. Entreguem-me ao carrasco. E escolham o mais feliz para arrancar minha cabeça manchada de ódio.

Tito de Andréa.