sábado, dezembro 25, 2010

Poema-biografia-atraso

Você pode atingir algo,
Comprar o amor de cristo,
Vencer com sangue e cruz,
Comemorar o natal em Babilônia,
Plantar trigo e crisântemos,
Encher a mão de asfódelos,
Aplacar a ira de um mar sem navios,
Comungar o azul,
Permitir que papoulas cresçam nos olhos,
Deixar flores de sangue na água quando cospe,
Cuspir todo sangue amarelado de uma saliva venenosa,
Encontrar o sentido em dunas milenares e cactos sagrados,
Compreender o sentido do ínfimo, do menor, do pior, do mais fraco,
Torturar o verão que se prender aos cabelos,
Deformar a areia com os pés,
Atentar contra a paz da grama,
Acalmar com a própria carne a fome da alcatéia,
Inundar tempestades com lágrimas,
Violar o outro lado do espelho,
Encontrar-se na extremidade oposta,
E saber que as coisas serão coisas que serão coisas que serão coisas que serão coisas.

O sol não é bom para todos.
O sol não é bom para todos.
O sol não é bom para todos.

Você pode atingir algo,
Ler nas entrelinhas,
Beijar a lua refletida no olho,
Lamber cristais de sal,
Solfejar cães risonhos,
Iluminar o dia,
Mas o sol não é bom para todos, não para todos e as coisas serão sempre as coisas.

Felizes são os outros.
Os outros os outros dos outros que são os outros para os outros e nunca eu porque eu nasci após o tempo correto e penetrei com unhas compridas num mundo que nunca estaria pronto para me aceitar visto que nunca esteve pronto para ser aceito
Felizes são os unicórnios, que puderam deixar de existir sem grande violência.
Felizes os Deuses que custam cinquenta e nove e noventa numa edição de luxo que prega o desapego.
Felizes os dinossauros que mastigaram fuligem.
Felizes os que tentam.
Feliz o homem que fez a sua casa à beira de um abismo minado, pois este já não reside sob as graças de Allah.
Felizes sempre todos os que olho, a tudo que assisto, em todo lugar por onde passo, pois se escondem e se encontram nisso.

Mas o sol não é bom para todos e há aquele a quem chamam de intruso, pois nasceu após seu tempo.
Mas o sol não é bom para todos e nem sempre podemos ter um Natal no coração da avó.
Pois há morte e algo de errado no seio familiar e as coisas são sempre as coisas para as coisas.

Feliz o fogo que lambe tudo e permite que tudo o seja.
Feliz o primeiro gafanhoto do vale Meggido.
Feliz o primeiro animal morto quando o mar virar sangue novamente.
Feliz aquele que, louco, mastigou ferro em brasas, pois este compreendeu a natureza de Deus.
Feliz aquele qualquer um, aquele outro qualquer, aquele que não se nota, pois este faz parte.

Felizes os outros, sempre os outros, a qualquer preço, a todo custo, pois podemos comprar o amor de Cristo num natal quente e essa é a boa nova que os anjos vieram anunciar em módicas prestações de nove e noventa e começar a pagar apenas no próximo mês de março.

Feliz aquele que sorri enquanto ouve o mais triste dos homens falando.

É possível ir adiante,
Aterrar o mar inteiro,
Comer petróleo,
Amamentar um urso,
Criar o ódio,
Fomentar a fome,
Cansar-se de tudo e saber que as coisas são as coisas e sempre as serão,
E pensar que o sol não é bom para todos e que minha avó está morta e nunca mais me amará.

Felizes os outros por serem os outros e nem ao menos tentarem.
Feliz o que entoou o primeiro canto de adeus e o primeiro que avistou a bomba,
Feliz o que não vê chorar, que não tenta, que não sorri, que não vive ao morrer.

Terrível, terrível, terrível, terrível, terrível, terrível, terrível a sina daquele que parou e vislumbrou o sol e sua sina terrível, terrível, terrível, terrível...

Felizes os outros, feliz o sol, feliz a terra, o fogo, a água, a palavra.
Feliz a língua do sedento,
Feliz o primeiro homem a chorar, já não chora e jamais chorará.

Tito de Andréa
2010


segunda-feira, dezembro 13, 2010

Língua

ao amigo que me entregou essa história

- Falar. É preciso falar com alguém. Se só há você. Só há você. Para transmitir essa fala mastigada, nessa língua comida por traças, nessa língua comatosa que compartilhamos, que dividimos. Essa língua já apodrecida, velha demais, gasta demais, insuficiente. Só temos a nós para falar. Só temos a nós e o mundo já não é novo. Envelhecemos com a língua, fomos comidos assim como ela foi comida, e a terra dos pés agora cheira a pó e tem gosto de fumaça escura. Estão salgados os campos e até os deuses do pai e da mãe e as árvores e os pássaros falam outra língua. Para ouvir a essa da qual falo, só nós estamos aptos, apenas nós dois e até mesmo nós dois não tardaremos a morrer. Sim, primeiro morrerei eu, depois, com a minha ausência morrerá você. Os ritos em língua materna não ocorrerão. Mas devemos ser perdoados pela falta. Não é tão grave, não faça essa cara, não, veja, levaremos ao mundo dos mortos nossa língua igualmente morte e nossos ancestrais nos receberão com cânticos de vitória como aqueles que a infância guardou dos exércitos. Poderíamos falar sobre a infância agora, falar sobre isso, sobre a infância, dos pés na terra, do gosto das coisas. A terra. Foi prometida? Alguém a prometeu? Poderíamos falar sobre mais, só há você para me ouvir e só eu para ouvir a você, vê? Somos como irmãos dentro de um ventre, agora. Antes os homens, os outros, passavam por nós e nos olhávamos como se fossemos loucos, dementes. Colocaram-nos aqui. Longe. Para não incomodar. Que não incomodemos. E não usaram nossa língua para se dirigir a nós. Eu, eu e você, que somos esses velhos, que não servimos, falamos essa língua-vento, merecemos certo respeito. Que nos tranquem juntos, é ter alguém com quem falar, vá lá, mas que o façam direito, com respeito, com um rito. É preciso manter a calma, me aproximar, só há você para me ouvir, somos os últimos. Todos mortos ou convencidos, convertidos, esquecidos. Nossa língua capenga. Nossa língua muleta. Está louca. Só nós dois. E você mal ouve. Eu falo e você fala ao mesmo tempo, mal ouço o que você diz, quando me calo para tentar você faz o mesmo, quando recomeço tudo se inicia igualmente. Você mal deve ouvir também, mas eu levo a mão à cabeça e você faz o mesmo, eu me afasto e você se afasta, me aproximo e você volta. É preciso dizer. Falar. Se só há você, falo com você. Que par. Nossa língua mereceria mais? Não. Provável que não. Que par. Poderíamos falar sobre isso. Em nossa língua é possível falar sobre qualquer coisa. Tudo. Poderíamos falar sobre tudo. Mas eu tento tocar sua mão e só toco o vidro. Quem dividiria duas celas com vidro? Quem constrói duas celas tão iguais e simetricamente inversas? Você tenta me tocar também, o rosto frustrado, igual a mim. Posso sentir em mim que as feições são iguais, não são? Igualmente frustrados. Poderíamos quebrar o vidro e nos abraçar, mas e se nos separassem? Não, não podemos arriscar, é preciso falar, é preciso falar. É preciso que haja alguém. Qualquer um. Só há você. Que entenda. Que entende. É preciso falar...


Tito de Andréa