quarta-feira, março 21, 2007

Vangorghanismo

Pois já não tenho pés, nem terra para colocar meus pés.
De modo que todo chão qu'eu piso é feito de pedra e toda pedra que toco com meus joelhos calejados é feita de mim.
Ando por sobre meu corpo.
A cabeça dói e o corpo responde.
Treme, baba e engole a língua.
Não agüento a divindade que há em mim.
Explodo para dentro.

Sinto falta de minhas chagas na boca.
Minhas ulceras abertas.
Meus vulcões de ácido e espinhos nos dentes.
Minhas cultivadas dores que me embalavam os sonos como uma mãe que cuida de seu filho adoecido.
Sempre fui um inválido, doente.
- Ah minha mãe, dai-me tua mão e leva-me contigo. Já não agüento mais estar cá.
Ah minha mãe, agarra-me pelo colo e embala-me a vida. Encosta minha suada cabeça em teus frios ombros e conta-me de nossos avôs que viajaram por barcos e noites.
Ah minha mãe, se me visse agora, feto natimorto da vida, e uma vida abundante havia me sido prometida.
Ah minha mãe, por que me mentiu?

Pois já não sinto nem um átomo de mim.
E é como se o corpo meu não me fosse.
E me basta não o ser;
Eu;
Um peixe respirando terra.

- Ah minha mãe, por que já não me agarra pelos cabelos e me espanca até qu'eu compreenda que estou errado?
Ah minha mãe, que diria de mim se pudesse? Que diria dessa pintura mal feita de tudo que viu?
Ah minha mãe, por que me vê gritar e não me ouve?

Já não jardim, vi-me um mar noturno.
Já não ave, vi-me girino e sapo.
Já não homem, vi-me Deus e depois pó.
- Minha mãe, pregar-me-ão na cruz e por que nada faz?
- Minha mãe, pregar-me-ei na cruz, e você, por que nada faz?
Já não tão só, vi-me morto.

E a vida que ardia e não arde mais,
Dói.

Tito de Andréa.

quarta-feira, março 14, 2007

Pecaminossanto

Não brinca com tuas chagas menino-Deus.
Não trepa na cruz,
Não faz pouco da santa.
Não come carne no domingo,
Vê a vista do cego que do barro ao cuspe retorna multicolorida?
Preto e azul.

Não sonha no alto e não dorme na terra.
Não vive à morte,
Teus espinhos e tua carne, sempre foram
Um só.
E tu,
Siamês do mundo.

Agora andamos de pés nus sobre a água e eu assisto ao meu corpo em queda livre pelo oceano. Ar em meu afogamento,
Carne em minha lama.
Não pedi, mas fui atendido homem.
- Deus meu, Deus meu,
Por que me abandonaste?
Agora ando de pés viventes por sobre ferro em chamas e sinto suas presas nas minhas carnes, sinto seus pés em meus ombros e teu peso em meu pescoço. Sinto teu mundo de pedra e de pão.
Peixe.

Não corre pro abismo
Não corre.
Perde-te para que não mais te encontrem.
Perde-te em teu livro negro.
Perde-te em tua história leve, em tua cruz de pregos e em tua coroa de vespas.
Perde-te.

Agora andamos e caímos lado a lado, mas eu me levanto primeiro.
Porque é de minha natureza abandonar o criador quando ele tomba.
Não permitirei ser tragado pela sua velhice.
E é isso que se ganha.
- Deus meu, Deus meu...

Vê?
Vê a vida que vive em minhas pedras que lanço às portas?
Vê a vida que parte e escorre em cabeças.
Meu pecado,
Pecaminosanto.

Vejo a linha que agora corda segura o sino.
Vejo a mão que agora braço acorda o santo.
Vejo o cego de bengalas mortas e de pedras velhas que caminha sangue pelo céu que ele mesmo vê.

Árvores de terra no meu sol.

Ergueram-te sem nenhuma surpresa em um grande pedestal de onde, de braços abertos, você abraçou o mundo em plena dor de pulmões cansados e cheios de sangue.

E é isso que se ganha.

Tito de Andréa

segunda-feira, março 05, 2007

Com ferro fere.

Visto minhas mais puras vestes de estrelas mortas, travisto-me de noite e dou a ti essas verdades que não te interessam. Mas serão tuas. Serão nuas e vivas viúvas. Serão feitas de pedra e diamantes, ouro e musgo. Serão corações pulsantes bombeando ar para dentro de tuas seringas. Serão morte para tuas vidas e sono para teus pesadelos. Alimento, água e analgésicos.
Toma-as sabendo que serão de tua responsabilidade, e de tua responsabilidade apenas. Não me interessarão mais nem me atormentarão. Toma-as e cuida-as, mantém-nas junto ao teu peito. Tranca-as junto aos teus tesouros e cuida delas. Dou-as a ti. E somente a ti elas serão como ferro quente. Serão como saliva fria. Toma minhas feridas, toma-as em teu aconchegante colo, em tuas doces lágrimas, em tuas mornas lembranças. Dou-as a ti e a mais ninguém, pois são de tudo aquilo que mais amo. Dou-as a ti e a mais ninguém, pois sei que tu meu compreenderás e sofrerás como ninguém mais. Pois sei que de ti arrancarei a vida da pele e da carne. Tranformar-te-ei em espada fria e afiada para cortar a cabeça do mundo. Então as toma e cumpre meu destino, meu amado filho.

Sou eu. Tu.
Sou o anoitecer e as estrelas transformadas em medo.
Sou teus pequenos pesares, tuas pedrinhas que guardas no bolso. Lembra de quando íamos ao rio e tu catava as mais feias pedras? Eram as mais sujas e tortas. Guardava-as e um dia eu te perguntei para quê as queria, lembra-te? Sorri. Queria mesmo tirar de tudo a beleza ínfima que tinham? Via mesmo naquelas pedras feias as pedras mais belas do rio? Via mesmo um grande rio naquele riacho? Via vida? Sou eu aquelas pedras feias que guardava no bolso. Sou eu o lodo do fundo do grandioso rio que prendia teu pé, sujava tua roupa e enojava-te. Sou a água do rio que se prendia a tua roupa e te adoentava. Abraça-me querido filho.

Em nosso leito de morte, sim nosso pois agora somos um só e teu morrer é meu morrer, seremos um pássaro negro pousado em fios elétricos. Seremos uma nuvem calada e silenciosa. Seremos uma dor que dói tanto que ao diminuir faz parecer que se calou e ao passar nem lembramos dela. Seremos um grande trovão. Seremos um fim.
Em meu leito de morte quero tuas pequenas e frias mãos sobre meu peito. Quero tua dor sobre meu peito. Quero tuas lágrimas - tão vivas e cheias de vida, que me calam as dores - quero-as regando as flores de meu túmulo. Quero-te preso a mim. Meu morrer é teu morrer. Minha dor é grande o suficiente para nós dois. Afunda em nosso barco. Agarra-te a mim. Afunde-mos juntos.

Sim.
Há um diviníssimo monstro lá de cima olhando para teus erros e alimentando-se de teus arrependimentos.
Sim.
Há uma enorme corrente de pesares escritas na tua mão.
Há uma pedra pendendo de teu pescoço e não há fim na queda, abraça-te a ti mesmo.
A gravidade foi minha única amiga em vida, e prometo-te que ela não há de te abandonar. A vida em queda.

Quero ver em teus olhos cinza a chuva que me prometem. Quero a tempestade de vento em teus olhinhos. Quero teus traumas. Quero-os frios e fermentados.

Um bom vinho e uma boa vida.
Uma cama quente e uma noite fria.
Desejo-te um veneno longo e confortável.
Desejo-te a mais fria das noites no mais quente dos invernos.
Toda árvore morre no outono e para nós não há primavera, querido filho.

Toma tudo que te dei, amarra numa fronha e leva consigo enquanto foge do mundo que está em toda parte.
Teu coração bate porque nele há um exército pronto pra destruir a tudo. Comanda-os. Põe para fora a raiva que te dei ao dar a tua mãe meu esperma. Põe para fora a minha ira. Tu és a minha salvação. Salva-me.

Meu rebento redentor. Abre teus braços e abençoa-me.

Toma tudo que é teu por direito, todo o ódio calado que cabe a mim dar-te.

Agora parte. Como te é de direito.
É teu o reino.
São tuas as terras em chamas.
É teu meu inferno, come-o enquanto está quente.

Amei-me assim como amo a ti.
Isso foi pouco e será sempre.

Toma tudo isso e transforma no que quiser.

Não é mais meu, está tudo escrito em ti.

Com todo amor do mundo dei a ti teu começo, dou agora teu meio, vá buscar teu fim.

Tito de Andréa