a Liana Borges,
com todo amor de uma noite inteira
Nem todos os sonhos são felinos negros.
Nem todos os sonhos são sonhados de olhos amarelos voltados para dentro,
Testemunhas sorridentes dos crimes internos
Levitações de um Leviatã que assobia no vento.
Nem todos os sonhos rangem portas, apartam medos, separam pernas,
Fumaças amarelas, torres elefantes, orgasmo retorcido...
Nem todos os sonhos mancham.
Nem tudo que é Deus ressuscita no Domingo,
Algumas partes abandonadas abundam às sextas-feira,
Nem toda tosse é escárnio escarrado,
Alguma coisa sempre se prende no caminho,
Resta a palavra entupida no filtro,
Resta o choro que coagula no fonema.
Nem todos os sonhos são pontes de si,
Nem todo outro é a ilha que se parte,
Sobram esfinges que se devoram por falta de espelhos,
Sobramos em ácidos e em rasgo risonho.
Nem toda noite é veludo negro,
Há aquelas de vermelho e amarelo,
Há aquelas ruivas noites de despertar em prantos e rasura,
Há aquelas de amar e morrer entre a unha e o dente.
Nem todos os sonhos são poemas velados,
Nem todos os gatos são sorrisos tristonhos,
Nem toda gangrena encerra-se no peito,
O plexo solar que anoitece
Ardendo-se todo.
Nem tudo que mata nega a vida,
Resta em medo sal da carne,
E rima-se mal com desespero,
Como sangue pobre amarelando a saliva.
Nem todos os sonhos são repetições do desamparo,
Nem todo pecado é uma nódoa,
Nem toda palavra é um universo,
Há o múltiplo desconexo descompasso.
Nem todo coração é um inverno,
Nem todo amor é um corte fundo,
Há os que queimam e mordem,
Há os que partem os ossos.
Nem todos os sonhos são tinta,
Nem todo papel é um abismo,
Nem todo descaso é uma flecha,
Nem todo alvo é um massacre,
Nem todos os gritos são retratos,
Nem tudo que mente salva a vida,
Há os rotos, mortos, desgraçados,
Há os poucos que compreendem os infernos são os olhos.
Nem toda lágrima é uma forca desarmada,
Nem toda carne é a causa,
Nem todos os sonhos são verdade,
Nervo resistente da estrutura.
Nem todo sol desmente a noite,
Nem toda estrela enegrece a vista,
Nem toda dor é o pulso que se cansa,
Nem toda terra se treme de agonia,
Mas há a pedra que se dobra de desejo,
Há o pássaro que não morre no concreto,
Nem todo sonho é o veneno que lacera,
Nem todo sonho é o veneno que lacera.
Nem todo monstro brinca de habitar cama,
Nem todo sangue é vaidade esvaída,
Nem toda chaga é a luz que se carrega,
Nem há cegueira que se ferva iluminada.
Nem todo poema é uma ponte arruinada,
Nem tudo que seiva é saliva vegetal,
Nem todo sonho é uma máquina,
Nem todo sonho trinca os dentes.
Nem toda sorte teme escadas,
Nem todo corte espalha a dor,
Há os poucos que ficam em espera,
Suspensos, pairando, sem força.
Nem todo pedestal é a afirmativa que restava,
Nem todo dente parte a corda,
Há os que aprenderam a amarga liberdade,
Abandonados.
Nem todo sonho é uma farsa que se compra,
Nem todo sonho é esse lamaçal,
Nem todo gesto é um veneno que queima,
Há os desejosos,
Há os poucos que sabem do fundo de si
Os sonhos que se sonham só não pedem para si realidade.
Tito de Andréa