domingo, março 27, 2011

Muito tem se falado da relação do rio com suas curvas


Eu já não venho conseguindo dormir direito e acordar, toda noite de sono tem sido uma morte estranha e violenta, um aborto de mim mesmo no útero da noite e do sono, quando durmo já não acordo e, quando acordado não volto jamais a dormir, de maneira que estou sempre dormindo e sempre acordado, acordando num mundo do nosso onde sei ainda estar dormindo e seguindo, eternamente acordado para dormir do desespero dos olhos convulsivos fechados para despertar novamente, sem ter dormido, num outro mundo, sempre, sempre, sempre e sempre cada vez mais fundo até que de volta para a superfície,e m algum momento, sim, de volta sim, alguma hora há de acontecer, executam-se círculos o tempo todo, de volta a superfície depois de uma longa incursão ao centro, indo mais fundo até desembocar do lado de fora, de volta, enfim, não sem perdas, mas para gritar com os pulmões cheios de ar que se está vivo e acordado e pronto para o ataque do novo que se impôs durante a ausência de sono eterno que se deu até mesmo enquanto se estava acordado, se impondo lentamente como a água faz, não numa enchente que é quando a água é pura força sem ritmo e sem pudores piedosos, mas assim como o riozinho se impõe, o novo se imporá, como o pequeno rio diante da casa de um homem que não está atento e o rio vai bebendo das chuvinhas que caem e nem dizem muito, a mãe nem recomenda proteções agasalháveis e a chuvinha engorda o rio e um dia o homem está separado da outra margem por um rio imenso, um respeitável rio, um rio oceânico que o exclui, que se não o impedir de gritar, certamente o impedirá de ser ouvido por outra pessoa e o homem precisa agora aprender a conviver com a solidão e com o rio-novo que se gerou durante o sono e durante a vigília pouco vigilante, até o dia em que o rio, ainda sorrateiro e silencioso como muitas vozes caladas, penetra na casa do homem, este espaço sagrado, esse santo lugar, e o afoga e o leva no seio para o nutrir e o reintegrar ao que havia perdido e eu então acordarei e serei como o homem cheio de disposição e não me comportarei como o outro da narrativa que viu o rio-novidade instaurado diante de sua porta, como um desastroso presente e a ele deu as costas, não, não eu, eu não, eu arrebatarei o ar e para gritar a vida à vida e atirarei meu corpo no rio, sem chamas, sem choro, sem rezas, sem coração para ser enterrado no primeiro meandro e vencerei, com plantas presas ao cabelo e certo peso nas roupas, tendo certamente perdido os sapatos e as meias atingirei o outro lado do rio, tudo frio na outra margem, para encontrar um cemitério, o cemitério onde meus amigos, que morreram todos durante o sono, o meu sono, estão enterrados, e este seria um novo rio, um outro desespero, uma nova superposição, imposição da morte nas arestas esquinosas dos meus pés e será preciso não ter ansiedade, saber lembrar da ordem natural do mundo que prega com vivenciada verdade e estudo observado que aquele que dormem devem acordar – em algum momento, a menos que morram e ainda assim a regra é ainda mais verdadeira – que aqueles que dormem devem acordar num mundo completamente novo e solitário com tudo anterior morto e faz parte desse universo onde escolheu-se nascer e é preciso assumir a responsabilidade de suas escolhas e os amigos mortos não fariam mesmo grande falta, pronto, então, está vencido o novo e é preciso saber-se mergulhar nos rios, pois serão muitos com muitas curvas e muitos sonos e novos despertares e velhas mortes e toda noite o mesmo aborto silencioso e torto até que um dos rios vença e eu me afogue e retorne ao fundo do sono de onde saí e para onde retornam todos mesmo que ai retornar para lá, seja como se decidiu chamar esse lá, um lar, um outro plano, outro planeta, o fato é que ao retornar para o lá já não se é nada, ninguém se é mais no fundo do rio, tragado, fumado, tudo esquecido, mesmo em outro mundo, mesmo em outro lugar se está morto, e lá não se poderá encher o peito de ar e gritar a morte à morte, nem vencer nada, mas não se pode estar morto ainda, não, ainda não, que ainda estou dormindo e me adiantando muito na história que conto enquanto estou acordado e do que farei quando estiver acordado, e estou falando tendo consciência da impossibilidade desse pensamento, da impossibilidade de pensar em algo que seja realmente impossível, mas estou eternamente rodeado pelo paradoxo, roendo as paredes do impossível, assistindo lentamente enquanto durmo ou enquanto desperto o lento avançar do rio que se aproxima pronto para instaurar uma nova ordem, afogando os amigos que nunca tive, mas bem poderia ter tido em uma ocasião diferente, tivesse sido eu mais risonho, tivesse procurado, tivesse mantido uma ordem entre acordar e dormir e dormir e acordar e não trocado as mãos pela cabeça e os pés pelos rins ou qualquer outra parte cambiável do corpo que crie uma imagem desesperada que afasta os iguais porque torna-os imediatamente diferentes, então poderia ter tido amigos em uma vida outra ou em uma morte outra, pois estou vivo e morto, eternamente morto por estar vivo e condenado à morte, assim como se está acordado e condenado ao sono, e pedir uma mudança é uma revolta inútil há de ser tragado pelo rio, é impensável uma mudança que toque o coração, troque um acorde, mude as cordas, a nodocorda, aquela do pescoço, aquela do violão, que parte quando muito tesa e não soa nada quando frouxa, e que não pode mudar sua natureza, não pode querer mudar sua natureza, de estar acordado e de estar dormindo e assistindo a chuvisquinha que cai tamborilando no rio que já aumenta, e não posso gritar, ou posso gritar e não posso ser ouvido, o que dá no mesmo, pois a chuva intercepta minhas palavras e as usa para o rio crescer, mistura à lama minha palavra, escorre minha frase rio adentro, criando curvas, cavando meandros, afundando barquinhos de papel das crianças da outra margem, os filhos dos amigos que se afogarão logo, logo e nem sabem porque não podem ouvir ou não sabem ouvir o grito que chega junto com o rio, e só posso esperar para que seja minha vez de acompanhar esse fluxo que as minhas palavras agora acompanham de ser eu a me fundir ao rio, de me deixar levar, de estar úmido e unido a tudo, com o peito risonho e arfante, infantil, para unir-me aos amigos mortos que nunca tive, para unir-me aos filhos deles e despejar os meus filhos junto aos deles, sem um esforço grande, mesmo jamais tendo tido um esforço realmente grande, o que não muda nada, as coisas tendem a continuar as mesmas isso não gera absurdos, sem jamais ter conhecido uma revolta, unido sim, agora sim, ao rio e à matéria-novidade que compões suas cordas vibrantes e imutáveis que compõem seus átomos vibrantes que compõem suas moléculas vibrantes que compõem seu leito vibrante e que agora me vibra e me toma e me leva.

Tito de Andréa

2011