sábado, maio 28, 2011

Sem lágrimas, mas com muitas palavras

Eu não acredito em nada disso, veja, ouça, deixe-me dizer, deixe-me recompor o discurso, desdizer, torná-lo outro, infectá-lo comigo, mostrar a farsa. Eu repito: não acredito em nada disso, nada daquilo, eu não acredito em nada. Ouça aí, sente aí, sinta, carinha de anjo, vá só ouvindo, mesmo, mas não se preocupe, vá sentindo, não detenha sua cara de nojo, não impeça a face de mostrar, não segure o estômago, isso eu posso aguentar. Eu não preciso do seu respeito, do seu mesquinho reconhecimento, dessa coisica quase que nada que você leva aí junto ao peito, no lado onde se guardam, nas roupas mais finas, o bolso, onde você leva o que quer que se leve para dividir com aqueles que você ama, àquelas a quem você dá esse amorzinho mesquinho, por isso eu não me interesso, o que eu quero são as suas orelhinhas, meu querido, eu estou de Marco Antônio aqui, Marco Antônio shakespeariano discursando sobre o cadáver do meu próprio Júlio César tendo sido assassinado pelo meu próprio Brutus-eu. Tá ouvindo, meu bem, sou os três personagens principais dessa tragédia onde você é só o público, a crowd de romaninhos famintos e chorantes, percebe, pescou aí, pois pesque, arme sua vara com a menos atraente das iscas, a menos colorida delas e deixe deslizar verticalmente para dentro do rio, esse rio de sangue, de baba, de merda, tudo misturado, pegue aí, desse rio-meu, desse rio que eu estou te dizendo and lend me your ears, my dear. Me deixe falar, essa é a minha vez, é chegada a hora, a minha hora de dizer que tudo o que foi dito antes era uma mentirinha mal contada, daquelas que a gente ouvia quando era criança, ou quando amava alguém e só precisava ouvir o que precisava ouvir e tinha sempre um outro pronto pra mentir pelo bem do tudo estará bem amanhã. Cada sorriso meu, cada palavra, cada traço uma farsa, uma comédia essa tragédia, mas não divina, com perdão do trocadilho dantesco, divina não que eu não mecho com isso aí, que disso aí eu quero distância, meu negócio aqui te é dizer que foi tudo uma farsa, mas sem usar a palavra máscara, não vou usar tuas palavrinhas bobas, nunca usei máscaras, quando criança tentei, mas cheiravam a plástico barato e sempre me desagradou a respiração quente que voltava pro meu rosto da máscara. Guarde as lágrimas, meu bem, engula o choro, engula o choro e me diga, depois, ainda não é sua vez de falar, me diga o gosto que ele tem, para que eu possa ouvir e já não esquecer, não engolirei mais choros, nem represarei lágrimas, mas engula aí o seu choro que vai chegar a hora dele, não falta muito, vai chegar a hora de se afogar em lágrimas, ainda não, calme que agora é a hora da minha palavra, do fim dos sorrisos, eu não espero precisar sorrir jamais, não espero precisar sorrir quando terminar: não vai terminar nunca: eu vou seguir falando, vou ao inferno falando, sem sorrir, sim, cada sorriso foi uma traição, uma traição a mim, eu traí a mim com os sorrisos, com as conversinhas, calma, cale a boca, eu me traí com aquelas provas, cada vez eu que eu fiz uma correção, cada vez que eu reescrevi uma palavra, cada vez que eu me desculpei, retiro tudo, retiro tudo, apague tudo. Apague tudo, das suas fotos, das suas lembranças, das atas, dos autos, das bulas, apague as estrelinhas do seu céu, o sol sorridente da infância desenhado sem talento algum sobre a casinha com telhado porcamente pintado de vermelho e com um papai e uma mamãe e um cachorrinho sorrindo, todo mundo sorrindo, isso, apague, pode chorar agora, viu, não demorou, pode chorar e use suas lágrimas para borrar tudo, para distorcer tudo. Eu quero inaugurar aqui, o navio do teu esquecimento do meu sorriso, do meu gosto amargo cada vez que cumprimentei alguém com fingida simpatia, do meu próprio esquecimento, do apagamento, do esvaziamento, da morte infinita, do espaço vazio eterno que há entre um papel e outro, escolha aí o mais fino dos líquidos inflamáveis para atear fogo à minha pilha de palavras antigas, aos meus livros lidos com aquele tédio de quem está indo para um cadafalso moroso. Lance fogo a tudo enquanto ergo minha taça vazia de tudo, mas cheia de descrença para brindar suas lágrimas, para brindar seus músculos tesos, seus tendões odiando, seu coração bombeando mais sangue, para brindar à derrota que eu te nego, te nego o poder de sair derrotado, vença, meu bem, ganha, sobreponha-se, subjugue-me, isso meu bem, vença, vença, me esmurre, eu não vou parar, use o nó dos joelhos assim, eu não vou parar, eu vou sangrar, sim, mas não vou parar, não vou parar, não vou sorrir, isso, os cotovelos, o fio dos dentes, isso, aplique sua ira, eu não vou parar, use a lâmina das unhas na minha carne, no pescoço, atinja com precisão médica a veia que alimenta a cabeça, eu não vou parar, pise, pise com essa força, chute, cuspa, sinta, eu não estou sorrindo, eu não estou parando, eu nunca pararei, eu não preciso vencer, eu posso, de boa vontade, ser vencido, eu não vou parar, eu não vou parar, eu vou falar para todo

Tito de Andréa

2011

terça-feira, maio 24, 2011

Poema-biografia-afásico ou Blues da total incompetência ou Da tragédia de todo poema ou Poema-biografia-Rir-de-si

É preciso, o poeta pensa, é preciso escrever uma faca,
Mas não uma faca comum, uma faca cega de tanto cortar,
Uma faca com um olho, uma faca morna.
É preciso, ele pensa, ele pensa uma mão cheia de precisões,
Ele pensa os olhos cheios de ouro,
Ele pensa um veneno escorroso e corrosivo nos suores,
Ele pensa secreção, escorpiana cauda,
E morre-se.
Ele começa.
Impera a necessidade,
É preciso, ele repete, sempre.
– É preciso é preciso é preciso é preciso é preciso é preciso.

O poeta está nu,
Violentamente despido,
Imundo de suores e odores,
O poeta está e não escreve.

É preciso cantar, de alguma forma,
De algum modo, sem - que se diga agora, como me indicou um poeta amigo de certo professor Doutor - utilizar-se de adjuntos adverbias, sobretudo aqueles que tem como função demonstrar modo, repito, é preciso cantar de algum modo essa incompetência carnosa que ele propaga.

Algo ele propaga. Mas não comecemos o coro de risos.
Ainda não.

Há de chegar a hora de chamar os conhecidos, os amigos e as animosidades para dar seu depoimento.
Sim, pois há sempre a hora do juízo onde meia dúzia de amigos persistentes receberão voz contra todos os outros.
Todos os outros que ficaram cansados,
Todos os outros que não tiveram mais o que dizer,
Pois é bastante comum na humanidade esgotar a possibilidades de frases novas a dizer para outra pessoa e o silêncio, ao contrário do que prega a voz vigente, não diz muita coisa, é preciso que se diga.
Todos os outros que não gostam, que odeiam ou que implicam.
Hão de ser muitos.
Mas não ainda:
Ainda não.
Ainda não.

Antes de tudo é importante contemplar certos aspectos de sua nudez muda.
Adjetivos ainda são permitidos, ele pensa e sorri.
Ele pensa e sorri.

Mas poderia dizer que o lar é onde se guardam corações, ou quando, como disseram depois. E poderia maldizer o sol, como é de seu feitio, ou, num momento mais infantil de velado retorno à mediocridade da adolescencia, essa esfinge derrotada, Édipo vencendo seu complexo e fazendo a mãe de Freud tão infeliz... Ele poderia falar da morte.

Mas ele está nu. Ele não tem nada a dizer e nem é meia noite nem é meio dia.
A hora do lobo passou e, quem sabe certa quantidade de álcool ou a escolha musical adequada possam ajudar um pouco... Talvez a mulher nua possa ajudar um pouco, talvez a intensidade correta... Aplicada à vontade correta, talvez a vida possa ajudar um pouco...
Mas não.

O poeta está nu.
Para um pouco para pensar em destruir a si de formas trágicas,
Desvela-se para os mais próximos,
Chama-os para presenciar sua desgraça exterior - a nudez - e guarda, mascaradamente, o que persiste dentro para outra hora, outra hora quem sabe mais feliz, outra hora quem sabe menos morta, tanta mentira...

Ele guarda para outra hora. Uma hora onde ele possa sentir as trombetas dos anjos e os aguilhões dos demônios.
Uma hora com Stravinsky e a primavera,
Uma hora com Mozart,
Com Beethoven,
Com Bartók,
Com Chopin.
Com o diabo que o valha para salvaguardar um lugarzinho no inferno para uma rápida estadia que valessa a Rimbaud uma coisa qualquer.

Uma última pérola que pudesse trazer de lá, do inferno, da profundidade mais esquecida, no canto menos cantado, com tudo o que está ao redor,
Com todos os Deuses mortos, enterrados - em vala comum ou não –
Com todos os homens mortos - suicidados ou não –
Com todos os diabos - sorridentes ou não –
Com tudo que puder, ele espera e faz suas libações e tenta.
Com fôlego – ou não –.

Oremos, pois não é possível.
E já não será possível depois.

Mas é imperativa a tentativa frustrada,
É imprescindível que se debata,
E que se esmurre,
E tente mergulhar,
E vá mais fundo do que possa,
E que tenha uma embolia na alma,
E que suba velozmente, com os pulmões clamando por ar,
E que jamais o encontre novamente.
E que não possa mais, pois já não é possível, pois está nu e morto.

É importante - ele pensou pela manhã quando tudo era novo e dia não fedia a guardado - estar meio morto sempre, para poder melhor saber-se.
É preciso estar meio morto sempre para melhor sentir.
E rasgou-se todo em papel velho de versos amarelos e terríveis.

Oremos, pois já não é possível,
Mas é preciso que ele saiba como vociferar sua incapacidade
Que escrita é incapacidade e não é possível dizer nada.

Mas ele guarda, ele guarda a incompetência para si.
Ele a tem e a ama e a cuida.
É preciso cuidar das coisas que se tem, ainda mais quando não se tem muito, ainda mais quando não se tem nada e ele espera o inferno que virá, com um Van Gogh de braços abertos e sem orelhas para ele ser,
Ele espera o inferno inteiro para poder ir buscar o mais baixo tesouro do mundo.
Ele espera atingir algo,
Nem que seja um dente partido de tanto ódio
Ou
Uma chuva inversa que esbraveje conta as núvens.

Mas o sol não é bom para ele e ele disse não para todos.
Mas o lar não é onde o coração está – nem quando, ouviram –
Não há mais coração,
Não há lobos em suas horas,
Não há.

Acabou.

Tito de Andréa