Sem lágrimas, mas com muitas palavras
Eu não acredito em nada disso, veja, ouça, deixe-me dizer, deixe-me recompor o discurso, desdizer, torná-lo outro, infectá-lo comigo, mostrar a farsa. Eu repito: não acredito em nada disso, nada daquilo, eu não acredito em nada. Ouça aí, sente aí, sinta, carinha de anjo, vá só ouvindo, mesmo, mas não se preocupe, vá sentindo, não detenha sua cara de nojo, não impeça a face de mostrar, não segure o estômago, isso eu posso aguentar. Eu não preciso do seu respeito, do seu mesquinho reconhecimento, dessa coisica quase que nada que você leva aí junto ao peito, no lado onde se guardam, nas roupas mais finas, o bolso, onde você leva o que quer que se leve para dividir com aqueles que você ama, àquelas a quem você dá esse amorzinho mesquinho, por isso eu não me interesso, o que eu quero são as suas orelhinhas, meu querido, eu estou de Marco Antônio aqui, Marco Antônio shakespeariano discursando sobre o cadáver do meu próprio Júlio César tendo sido assassinado pelo meu próprio Brutus-eu. Tá ouvindo, meu bem, sou os três personagens principais dessa tragédia onde você é só o público, a crowd de romaninhos famintos e chorantes, percebe, pescou aí, pois pesque, arme sua vara com a menos atraente das iscas, a menos colorida delas e deixe deslizar verticalmente para dentro do rio, esse rio de sangue, de baba, de merda, tudo misturado, pegue aí, desse rio-meu, desse rio que eu estou te dizendo and lend me your ears, my dear. Me deixe falar, essa é a minha vez, é chegada a hora, a minha hora de dizer que tudo o que foi dito antes era uma mentirinha mal contada, daquelas que a gente ouvia quando era criança, ou quando amava alguém e só precisava ouvir o que precisava ouvir e tinha sempre um outro pronto pra mentir pelo bem do tudo estará bem amanhã. Cada sorriso meu, cada palavra, cada traço uma farsa, uma comédia essa tragédia, mas não divina, com perdão do trocadilho dantesco, divina não que eu não mecho com isso aí, que disso aí eu quero distância, meu negócio aqui te é dizer que foi tudo uma farsa, mas sem usar a palavra máscara, não vou usar tuas palavrinhas bobas, nunca usei máscaras, quando criança tentei, mas cheiravam a plástico barato e sempre me desagradou a respiração quente que voltava pro meu rosto da máscara. Guarde as lágrimas, meu bem, engula o choro, engula o choro e me diga, depois, ainda não é sua vez de falar, me diga o gosto que ele tem, para que eu possa ouvir e já não esquecer, não engolirei mais choros, nem represarei lágrimas, mas engula aí o seu choro que vai chegar a hora dele, não falta muito, vai chegar a hora de se afogar em lágrimas, ainda não, calme que agora é a hora da minha palavra, do fim dos sorrisos, eu não espero precisar sorrir jamais, não espero precisar sorrir quando terminar: não vai terminar nunca: eu vou seguir falando, vou ao inferno falando, sem sorrir, sim, cada sorriso foi uma traição, uma traição a mim, eu traí a mim com os sorrisos, com as conversinhas, calma, cale a boca, eu me traí com aquelas provas, cada vez eu que eu fiz uma correção, cada vez que eu reescrevi uma palavra, cada vez que eu me desculpei, retiro tudo, retiro tudo, apague tudo. Apague tudo, das suas fotos, das suas lembranças, das atas, dos autos, das bulas, apague as estrelinhas do seu céu, o sol sorridente da infância desenhado sem talento algum sobre a casinha com telhado porcamente pintado de vermelho e com um papai e uma mamãe e um cachorrinho sorrindo, todo mundo sorrindo, isso, apague, pode chorar agora, viu, não demorou, pode chorar e use suas lágrimas para borrar tudo, para distorcer tudo. Eu quero inaugurar aqui, o navio do teu esquecimento do meu sorriso, do meu gosto amargo cada vez que cumprimentei alguém com fingida simpatia, do meu próprio esquecimento, do apagamento, do esvaziamento, da morte infinita, do espaço vazio eterno que há entre um papel e outro, escolha aí o mais fino dos líquidos inflamáveis para atear fogo à minha pilha de palavras antigas, aos meus livros lidos com aquele tédio de quem está indo para um cadafalso moroso. Lance fogo a tudo enquanto ergo minha taça vazia de tudo, mas cheia de descrença para brindar suas lágrimas, para brindar seus músculos tesos, seus tendões odiando, seu coração bombeando mais sangue, para brindar à derrota que eu te nego, te nego o poder de sair derrotado, vença, meu bem, ganha, sobreponha-se, subjugue-me, isso meu bem, vença, vença, me esmurre, eu não vou parar, use o nó dos joelhos assim, eu não vou parar, eu vou sangrar, sim, mas não vou parar, não vou parar, não vou sorrir, isso, os cotovelos, o fio dos dentes, isso, aplique sua ira, eu não vou parar, use a lâmina das unhas na minha carne, no pescoço, atinja com precisão médica a veia que alimenta a cabeça, eu não vou parar, pise, pise com essa força, chute, cuspa, sinta, eu não estou sorrindo, eu não estou parando, eu nunca pararei, eu não preciso vencer, eu posso, de boa vontade, ser vencido, eu não vou parar, eu não vou parar, eu vou falar para todo
Tito de Andréa
2011