segunda-feira, maio 25, 2009

Das Mortes de Toda Hora

Estendi, por paragens e por rotas de ônibus e carros e ratos e gentes, toda minha amplidão de olhares estomacais e arcaicos.
Estendi por tudo que passei uma armadilha sulfurosa e onde ficaremos presos.
De todas as horas em que morremos,
De todos os olhares cheios de lágrimas,
De todos os engasgos, soluços, tosses, e pigarros,
Por tudo que é mais sagrado e maculável,
Por todas as santas, igrejas e cruzes,
Em nome de tudo que perdoa e corrói e impede,
Por tudo que ama e odeia e sabe cuspir verde sobre os ombros,
Por tudo que canta à noite e uiva e anoitece a vista.

Pelas angustias magoadas em palavras veladas,
As frases pela metade,
As crianças cruas, cancerosas, terminais e sorridentes,
Pelas manchas na roupa, marca de esperma, sangue virginal, saliva de puta,
Pelos tortos caminhos do centro-da-cidade,
Nas vielas drogadas da cidade-pedra,
Por todos os montes das oliveiras,
Gólgotas e dias-de-ser-de-novo...

Só por hoje somos todos morte,
Só pela morte viveremos hoje,
Morrer duas vezes e além...

Por todas as facas sorrateiras,
Todas as quarenta moedas abafadas,
Todas as tríplices negações ao pôr do sol,
Nego, nego, nego,
Por todos os deuses mortos-vivos,
Por todas as ondas de calor,
Por todas as pedras no sapato, engrenagens que gemem, filhos pródigos se alimentando com os porcos.

Por toda pedra atirada contra o pássaro,
Por tudo que me assusta e me acovarda e tudo que dê bad trip e grito friorento.

Por tudo que cante o sol,
Por todos os carmas,
Por todos os Krishnas e budas e Brahmas,
Todas as maldições calmas,
Por tudo que seja abençoado e lento e vivo e biográfico.

Pelas passagens de olhos abertos em que vejo o que acontece a todos e que sinto o que acontece a todos e que me arrependo do mal que não causei só porque vi e senti sua dor e sua morte.

Só porque pude compreender como compreendi.
Só porque dei-me ao direito de parecer redentor de braços cruzados e bêbado até quando sóbrio.

Só porque anulo a dor que esse poema causa e dou a você uma ferida viva, um parasita praguejante.

Só porque olhei um a um e fui um e outro e em todos havia a mesma dor.
E tudo dói.

Pelas escadas subidas com esforço sobrehumano com que eu subo.
Pelas fontes cheias de larvas e do que não presta,
Pela falta de respeito na cara, dedo na ferida, pedido de olhapracá,
Por tudo que não fará falta:
- Olha pra cá!

Porque sento sozinho e falo de mim.
E estendo a dor da pele e de mais fundo a todos que escutam, mas eu falo e toco e compreendo a mim apenas.
Porque não me importo nem me importarei com o que esteja fora e que não seja farra e fagulha de incêndio.

Por tudo que é morte terrível,
Por tudo que é sangue no olho,
Por todas as horas com raiva,
Por todo ranger de dentes,
Em todo ranger de dentes escreverei meu nome.

Nas noites bem dormidas e nas noites quentes de pesadelo indigente, escrevo meu nome;
Nas manhãs doentes e no ácido clorídrico, escrevo meu nome;
Nas nuvens carregadas e em tudo que é ameaça nervosa na hora da eternidade, escrevo meu nome;
Escrevo meu nome nas costas da cidade em tudo que reluz e não é ouro,
Passo e olho e toco e há campos em teus olhos e não serão devastados nossos estacionamentos.

Construir shoppings em cemitérios indígenas,
Celebrar puteiros em igrejas,
Dançar fogueiras em praças públicas,
E por tudo que constrói e tudo que prostitui e tudo que queima,
E por tudo que vende e rouba no peso e escreve nomes ensanguentados em paredes.

Tudo que seja passado angustiado gemendo em espelhos.

Tudo que seja vazio como a vida e a morte e o túmulo de Adão.

Espalho sangue infecto pelo quarto e pelos restos rotos dos meus funerais,
Espalho suicídios e poemas suicidas,
Espalho boatos, semeio vento, enveneno porcos, ponho olho gordo, cuspo na cara, destrato a mãe, bato na vó, sou tudo que é vil e que é podre e que vive.

E sinto cheiro de vida forte
E a cabeça dói e doerá.

E juro por tudo que jura,
E sangro por tudo que sangra,
E sinto por tudo que sente,
Sinto muito.

Agora,
Por tudo que está do lado de dentro e que ser exposto,
Por tudo que explode sem aviso,
Por tudo que se esconde num olhar e por tudo que se grita com os dentes entreabertos,
Por toda vergonha velada e todo velório com caixão fechado,
Por toda filha que chora pela mãe e por toda mãe que dá o peito,
Por todo membro em riste e por toda menstruação que atrasa,
Por todo dente quebrado e por todo pescoço rijo,
Que eu caminho mão no bolso e olhar baixo,
Que eu sigo olhando baixo e seguirei magro de olhos doentes e estomago fúnebre e retrato em letra.
Distante,

Mais distante de mim que do resto,
Do resto mais próximo em amizade retomada em encontro casual,
Mais perto que o vômito e o choro anunciados,
Mais perto que a morte,
A morte das horas e por toda hora
Por toda hora que morremos e só por hoje seremos matéria gasta e feita de morrer,

Por todas as horas de nossa morte,
Agora e na hora de nossa vida,
Antes e por todos os momentos anteriores,
Antes e por todas as fotografias que amarelecem,
Antes e por todo sangue que seca,
Por toda criação que respira,
Por todo átomo que se rompe,
Por todo corpo dilacerado,
Pelo braço barroco que é parte e é todo,
Pela cidade cinza, pelos campos em cinzas, pelas urnas com corpos de entes queridos,

Agora, que é agora que dói a alma, a cabeça e os sentidos,
Agora, que é agora que sangramos,
Agora, que é o que resta para uma morte,
Agora que é a única hora,
Por todos os momentos roídos pelas traças,
Por todas as bocas lambidas por cães,
Por toda terra que foi revirada por animais,
Por todo bêbado mendigo e tudo que tem ranço,

Pelos deuses todos de todas as religiões antigas,
Pelos deuses que nunca foram descobertos e nunca foram adorados,
Pelos deuses mortos em batalha,
Pelos monumentos ao desconhecido,
Pelos paraísos prometidos e pelas virgens e pelo leite e pelo mel.

Por todo prazer controverso,
Por toda letra escarlate,
Por todo tolo da vila,
Todo beberrão anônimo,
Todo telecineta analfabeto,
Por todo poema que cante o mundo,
E por qualquer folha em branco que arranque uma lágrima,

Por todo pai que deserda o filho,
Por toda mãe que foge à noite,
Por todo acidente inevitável,
Por toda e qualquer matilha atacada por raposas.

Por cada martírio, tourada, massacre, fogueira santa,
Por tudo que seja uma voz rude,
Todo gesto ferino para ferir.

Por todas as bocas, dentes, marcas de agressão,
Estupros ao entardecer, partos à aurora e funerais ao meio dia,
Por tudo que é feio,
Por tudo que é fraco.

Por tudo que morremos num ato de amor,
Por toda alma derramada num jato de gozo,
Pelas lágrimas ácidas e pelas frestas por onde a luz se esgueira.

Por todo poema estendido até o fim,
Por todo poema sem fim,
Por tudo que se transforme em poesia,
Pela morte que sorrirá,
E em nome do sorriso que morre.

Tito de Andréa

quarta-feira, maio 20, 2009

Poema-sangria

Guarda então no teu peito-de-estar-cheio.
Cheio de estar em si mais fundo que o fundo e depois ainda além e ao infinito
Átomo egoísta de si
Guarda!
Guarda entre as cochas, entre as ondas do mar e a pedra
Ás mortes.

Não aceito mais teus tesouros...
Teus tesouros de força enforcada,
Tuas ânsias engasgadas, mastigações...
Come tua palavra retorcida que não me alimentarei.

Hoje não dormirei no lar.
Hoje não vomitarei pão-de-má-vontade
Não abraçarei carne salgada de verde
Hoje sou negativo barco para o silencio dos rancores.
- Não me toca.

Não restará, de pé, nenhum tipo de choro,
Nenhuma pedra que não tenha sido amada,
Nenhum resguardo de grávida.
Logo após o parto rasga o que restar
Rasga e não busca forma de salvação.

Queimarei em minha pele teu ranço de toque-de-mão maculado.
Queimarei em minhas cartas e poemas tuas vidas sem valore teu morte-agora-para-sempre.
Queimarei na pira do meu peito os restos mortais do teu Deus na negação e da infância.

Queimarei a tudo e ao resto após.

Guarda as cinzas.
Guarda as cinzas e pede perdão a elas.
Às cinzas dê de mamar com esse teu leite talhado dos pedidos a salvo.
- Teus pedidos de perdão.

Guarda essas cinzas - antes que o vento ao Diabo as carregue -, pois entre elas está a corda que te ligava ao teu sono tranquilo.
Que te guardava de teu naufrágio-aos-berros.

As letras do meu nome não mais terão sentido.
As cores e o ácido da pele não mais terão sentido.
As palavras, os sons, os gestos não mais terão sentido.

Não mais terá sentido o adeus penitente,
A mastigação que abafa o grito
Ranger de dentes e choro.
Não.

Não mais nos servirão pratos cheios de forma de matar a alma um do outro.
Não mais chacina velada.
Olhares de desprezado nojo mutuo.
A letra escarlate na testa alheia.
Não mais nome aos gritos e cães ladrando.

Chega de deserto que as caravanas passam.
Passam - muito além da minha porta hoje - e hoje sou pura negação subcutânea por mares nunca dante navegados.

Hoje é dia de alegria solitárias
Egoísmo de dentes abertos e mandíbula relaxada.
Hoje eu quero a pura ânsia vertiginosa de não ter pátria nem pai.

Tito de Andréa

quarta-feira, maio 13, 2009

Pálido

Não será retribuído à criança seu punhado de terra.
Não é mais hora de falar de colheitas e gafanhotos,
Nosso tempo passou e soubemos chorá-lo.

É ontem que eu te amo.
É ontem que eu sei ódios e compreendo afetos.
É ontem que eu adoeço de febres e de humores falidos.
É ontem que eu grito meu sangue e fervo as têmporas.
Hoje é hora de zero.
Hoje é ruína sem beleza.

Não será feita nova oração para os desabrigados
Não seremos sementes de tempestade.
Sobrarão em flores nossos espinhos sorridentes e nossos soníferos sem mesuras
Porque não dissemos o que queríamos dizer um ao outro enquanto houve olho e dente e suor. Não haveria outra forma.
- Lágrima não encontraria lugar entre meus olhos e o resto do mundo.

Hoje não encontro mais as perdas que tinha.
Hoje sou paz e pássaro que passa.

É ontem que eu me encontro, ainda com mãos erguidas, dentes amostra, todo lutas por dentro e por fora o medo suado que guardava.
É ontem que eu aponto e digo quem sou.
Hoje é dia de dança renovada e emergente onda que estilhaça a rocha,trespaça a terra, invade a casa e rouba a paz da mãe sem filhos.
Hoje é dia de mar. Hoje as raposas casam.

Não retribuirão, à criança que fomos, nossos punhos cheios de terra.
Nossos dias segredados ao pé do ouvido.
Nossos ventos que criávamos por ser mais velozes que os dias.
Nada disso será dado.
Não será dado por não ter sido tomado. Demos de sorriso em riste, de carne lúcida. Demos porque não poderíamos aguentar por tanto tempo a culpa de poder dizer que o Sol fui eu quem fiz nascer hoje.

Não velarão nosso cadáver sem unção de padre.
Não chorarão nossa morte sem redenção.
Não guardarão nosso corpo exposto sem pudores.

Não se lembrarão de mim.
- Por favor.

Tito de Andréa