Das Mortes de Toda Hora
Estendi, por paragens e por rotas de ônibus e carros e ratos e gentes, toda minha amplidão de olhares estomacais e arcaicos.
Estendi por tudo que passei uma armadilha sulfurosa e onde ficaremos presos.
De todas as horas em que morremos,
De todos os olhares cheios de lágrimas,
De todos os engasgos, soluços, tosses, e pigarros,
Por tudo que é mais sagrado e maculável,
Por todas as santas, igrejas e cruzes,
Em nome de tudo que perdoa e corrói e impede,
Por tudo que ama e odeia e sabe cuspir verde sobre os ombros,
Por tudo que canta à noite e uiva e anoitece a vista.
Pelas angustias magoadas em palavras veladas,
As frases pela metade,
As crianças cruas, cancerosas, terminais e sorridentes,
Pelas manchas na roupa, marca de esperma, sangue virginal, saliva de puta,
Pelos tortos caminhos do centro-da-cidade,
Nas vielas drogadas da cidade-pedra,
Por todos os montes das oliveiras,
Gólgotas e dias-de-ser-de-novo...
Só por hoje somos todos morte,
Só pela morte viveremos hoje,
Morrer duas vezes e além...
Por todas as facas sorrateiras,
Todas as quarenta moedas abafadas,
Todas as tríplices negações ao pôr do sol,
Nego, nego, nego,
Por todos os deuses mortos-vivos,
Por todas as ondas de calor,
Por todas as pedras no sapato, engrenagens que gemem, filhos pródigos se alimentando com os porcos.
Por toda pedra atirada contra o pássaro,
Por tudo que me assusta e me acovarda e tudo que dê bad trip e grito friorento.
Por tudo que cante o sol,
Por todos os carmas,
Por todos os Krishnas e budas e Brahmas,
Todas as maldições calmas,
Por tudo que seja abençoado e lento e vivo e biográfico.
Pelas passagens de olhos abertos em que vejo o que acontece a todos e que sinto o que acontece a todos e que me arrependo do mal que não causei só porque vi e senti sua dor e sua morte.
Só porque pude compreender como compreendi.
Só porque dei-me ao direito de parecer redentor de braços cruzados e bêbado até quando sóbrio.
Só porque anulo a dor que esse poema causa e dou a você uma ferida viva, um parasita praguejante.
Só porque olhei um a um e fui um e outro e em todos havia a mesma dor.
E tudo dói.
Pelas escadas subidas com esforço sobrehumano com que eu subo.
Pelas fontes cheias de larvas e do que não presta,
Pela falta de respeito na cara, dedo na ferida, pedido de olhapracá,
Por tudo que não fará falta:
- Olha pra cá!
Porque sento sozinho e falo de mim.
E estendo a dor da pele e de mais fundo a todos que escutam, mas eu falo e toco e compreendo a mim apenas.
Porque não me importo nem me importarei com o que esteja fora e que não seja farra e fagulha de incêndio.
Por tudo que é morte terrível,
Por tudo que é sangue no olho,
Por todas as horas com raiva,
Por todo ranger de dentes,
Em todo ranger de dentes escreverei meu nome.
Nas noites bem dormidas e nas noites quentes de pesadelo indigente, escrevo meu nome;
Nas manhãs doentes e no ácido clorídrico, escrevo meu nome;
Nas nuvens carregadas e em tudo que é ameaça nervosa na hora da eternidade, escrevo meu nome;
Escrevo meu nome nas costas da cidade em tudo que reluz e não é ouro,
Passo e olho e toco e há campos em teus olhos e não serão devastados nossos estacionamentos.
Construir shoppings em cemitérios indígenas,
Celebrar puteiros em igrejas,
Dançar fogueiras em praças públicas,
E por tudo que constrói e tudo que prostitui e tudo que queima,
E por tudo que vende e rouba no peso e escreve nomes ensanguentados em paredes.
Tudo que seja passado angustiado gemendo em espelhos.
Tudo que seja vazio como a vida e a morte e o túmulo de Adão.
Espalho sangue infecto pelo quarto e pelos restos rotos dos meus funerais,
Espalho suicídios e poemas suicidas,
Espalho boatos, semeio vento, enveneno porcos, ponho olho gordo, cuspo na cara, destrato a mãe, bato na vó, sou tudo que é vil e que é podre e que vive.
E sinto cheiro de vida forte
E a cabeça dói e doerá.
E juro por tudo que jura,
E sangro por tudo que sangra,
E sinto por tudo que sente,
Sinto muito.
Agora,
Por tudo que está do lado de dentro e que ser exposto,
Por tudo que explode sem aviso,
Por tudo que se esconde num olhar e por tudo que se grita com os dentes entreabertos,
Por toda vergonha velada e todo velório com caixão fechado,
Por toda filha que chora pela mãe e por toda mãe que dá o peito,
Por todo membro em riste e por toda menstruação que atrasa,
Por todo dente quebrado e por todo pescoço rijo,
Que eu caminho mão no bolso e olhar baixo,
Que eu sigo olhando baixo e seguirei magro de olhos doentes e estomago fúnebre e retrato em letra.
Distante,
Mais distante de mim que do resto,
Do resto mais próximo em amizade retomada em encontro casual,
Mais perto que o vômito e o choro anunciados,
Mais perto que a morte,
A morte das horas e por toda hora
Por toda hora que morremos e só por hoje seremos matéria gasta e feita de morrer,
Por todas as horas de nossa morte,
Agora e na hora de nossa vida,
Antes e por todos os momentos anteriores,
Antes e por todas as fotografias que amarelecem,
Antes e por todo sangue que seca,
Por toda criação que respira,
Por todo átomo que se rompe,
Por todo corpo dilacerado,
Pelo braço barroco que é parte e é todo,
Pela cidade cinza, pelos campos em cinzas, pelas urnas com corpos de entes queridos,
Agora, que é agora que dói a alma, a cabeça e os sentidos,
Agora, que é agora que sangramos,
Agora, que é o que resta para uma morte,
Agora que é a única hora,
Por todos os momentos roídos pelas traças,
Por todas as bocas lambidas por cães,
Por toda terra que foi revirada por animais,
Por todo bêbado mendigo e tudo que tem ranço,
Pelos deuses todos de todas as religiões antigas,
Pelos deuses que nunca foram descobertos e nunca foram adorados,
Pelos deuses mortos em batalha,
Pelos monumentos ao desconhecido,
Pelos paraísos prometidos e pelas virgens e pelo leite e pelo mel.
Por todo prazer controverso,
Por toda letra escarlate,
Por todo tolo da vila,
Todo beberrão anônimo,
Todo telecineta analfabeto,
Por todo poema que cante o mundo,
E por qualquer folha em branco que arranque uma lágrima,
Por todo pai que deserda o filho,
Por toda mãe que foge à noite,
Por todo acidente inevitável,
Por toda e qualquer matilha atacada por raposas.
Por cada martírio, tourada, massacre, fogueira santa,
Por tudo que seja uma voz rude,
Todo gesto ferino para ferir.
Por todas as bocas, dentes, marcas de agressão,
Estupros ao entardecer, partos à aurora e funerais ao meio dia,
Por tudo que é feio,
Por tudo que é fraco.
Por tudo que morremos num ato de amor,
Por toda alma derramada num jato de gozo,
Pelas lágrimas ácidas e pelas frestas por onde a luz se esgueira.
Por todo poema estendido até o fim,
Por todo poema sem fim,
Por tudo que se transforme em poesia,
Pela morte que sorrirá,
E em nome do sorriso que morre.
Tito de Andréa
Estendi por tudo que passei uma armadilha sulfurosa e onde ficaremos presos.
De todas as horas em que morremos,
De todos os olhares cheios de lágrimas,
De todos os engasgos, soluços, tosses, e pigarros,
Por tudo que é mais sagrado e maculável,
Por todas as santas, igrejas e cruzes,
Em nome de tudo que perdoa e corrói e impede,
Por tudo que ama e odeia e sabe cuspir verde sobre os ombros,
Por tudo que canta à noite e uiva e anoitece a vista.
Pelas angustias magoadas em palavras veladas,
As frases pela metade,
As crianças cruas, cancerosas, terminais e sorridentes,
Pelas manchas na roupa, marca de esperma, sangue virginal, saliva de puta,
Pelos tortos caminhos do centro-da-cidade,
Nas vielas drogadas da cidade-pedra,
Por todos os montes das oliveiras,
Gólgotas e dias-de-ser-de-novo...
Só por hoje somos todos morte,
Só pela morte viveremos hoje,
Morrer duas vezes e além...
Por todas as facas sorrateiras,
Todas as quarenta moedas abafadas,
Todas as tríplices negações ao pôr do sol,
Nego, nego, nego,
Por todos os deuses mortos-vivos,
Por todas as ondas de calor,
Por todas as pedras no sapato, engrenagens que gemem, filhos pródigos se alimentando com os porcos.
Por toda pedra atirada contra o pássaro,
Por tudo que me assusta e me acovarda e tudo que dê bad trip e grito friorento.
Por tudo que cante o sol,
Por todos os carmas,
Por todos os Krishnas e budas e Brahmas,
Todas as maldições calmas,
Por tudo que seja abençoado e lento e vivo e biográfico.
Pelas passagens de olhos abertos em que vejo o que acontece a todos e que sinto o que acontece a todos e que me arrependo do mal que não causei só porque vi e senti sua dor e sua morte.
Só porque pude compreender como compreendi.
Só porque dei-me ao direito de parecer redentor de braços cruzados e bêbado até quando sóbrio.
Só porque anulo a dor que esse poema causa e dou a você uma ferida viva, um parasita praguejante.
Só porque olhei um a um e fui um e outro e em todos havia a mesma dor.
E tudo dói.
Pelas escadas subidas com esforço sobrehumano com que eu subo.
Pelas fontes cheias de larvas e do que não presta,
Pela falta de respeito na cara, dedo na ferida, pedido de olhapracá,
Por tudo que não fará falta:
- Olha pra cá!
Porque sento sozinho e falo de mim.
E estendo a dor da pele e de mais fundo a todos que escutam, mas eu falo e toco e compreendo a mim apenas.
Porque não me importo nem me importarei com o que esteja fora e que não seja farra e fagulha de incêndio.
Por tudo que é morte terrível,
Por tudo que é sangue no olho,
Por todas as horas com raiva,
Por todo ranger de dentes,
Em todo ranger de dentes escreverei meu nome.
Nas noites bem dormidas e nas noites quentes de pesadelo indigente, escrevo meu nome;
Nas manhãs doentes e no ácido clorídrico, escrevo meu nome;
Nas nuvens carregadas e em tudo que é ameaça nervosa na hora da eternidade, escrevo meu nome;
Escrevo meu nome nas costas da cidade em tudo que reluz e não é ouro,
Passo e olho e toco e há campos em teus olhos e não serão devastados nossos estacionamentos.
Construir shoppings em cemitérios indígenas,
Celebrar puteiros em igrejas,
Dançar fogueiras em praças públicas,
E por tudo que constrói e tudo que prostitui e tudo que queima,
E por tudo que vende e rouba no peso e escreve nomes ensanguentados em paredes.
Tudo que seja passado angustiado gemendo em espelhos.
Tudo que seja vazio como a vida e a morte e o túmulo de Adão.
Espalho sangue infecto pelo quarto e pelos restos rotos dos meus funerais,
Espalho suicídios e poemas suicidas,
Espalho boatos, semeio vento, enveneno porcos, ponho olho gordo, cuspo na cara, destrato a mãe, bato na vó, sou tudo que é vil e que é podre e que vive.
E sinto cheiro de vida forte
E a cabeça dói e doerá.
E juro por tudo que jura,
E sangro por tudo que sangra,
E sinto por tudo que sente,
Sinto muito.
Agora,
Por tudo que está do lado de dentro e que ser exposto,
Por tudo que explode sem aviso,
Por tudo que se esconde num olhar e por tudo que se grita com os dentes entreabertos,
Por toda vergonha velada e todo velório com caixão fechado,
Por toda filha que chora pela mãe e por toda mãe que dá o peito,
Por todo membro em riste e por toda menstruação que atrasa,
Por todo dente quebrado e por todo pescoço rijo,
Que eu caminho mão no bolso e olhar baixo,
Que eu sigo olhando baixo e seguirei magro de olhos doentes e estomago fúnebre e retrato em letra.
Distante,
Mais distante de mim que do resto,
Do resto mais próximo em amizade retomada em encontro casual,
Mais perto que o vômito e o choro anunciados,
Mais perto que a morte,
A morte das horas e por toda hora
Por toda hora que morremos e só por hoje seremos matéria gasta e feita de morrer,
Por todas as horas de nossa morte,
Agora e na hora de nossa vida,
Antes e por todos os momentos anteriores,
Antes e por todas as fotografias que amarelecem,
Antes e por todo sangue que seca,
Por toda criação que respira,
Por todo átomo que se rompe,
Por todo corpo dilacerado,
Pelo braço barroco que é parte e é todo,
Pela cidade cinza, pelos campos em cinzas, pelas urnas com corpos de entes queridos,
Agora, que é agora que dói a alma, a cabeça e os sentidos,
Agora, que é agora que sangramos,
Agora, que é o que resta para uma morte,
Agora que é a única hora,
Por todos os momentos roídos pelas traças,
Por todas as bocas lambidas por cães,
Por toda terra que foi revirada por animais,
Por todo bêbado mendigo e tudo que tem ranço,
Pelos deuses todos de todas as religiões antigas,
Pelos deuses que nunca foram descobertos e nunca foram adorados,
Pelos deuses mortos em batalha,
Pelos monumentos ao desconhecido,
Pelos paraísos prometidos e pelas virgens e pelo leite e pelo mel.
Por todo prazer controverso,
Por toda letra escarlate,
Por todo tolo da vila,
Todo beberrão anônimo,
Todo telecineta analfabeto,
Por todo poema que cante o mundo,
E por qualquer folha em branco que arranque uma lágrima,
Por todo pai que deserda o filho,
Por toda mãe que foge à noite,
Por todo acidente inevitável,
Por toda e qualquer matilha atacada por raposas.
Por cada martírio, tourada, massacre, fogueira santa,
Por tudo que seja uma voz rude,
Todo gesto ferino para ferir.
Por todas as bocas, dentes, marcas de agressão,
Estupros ao entardecer, partos à aurora e funerais ao meio dia,
Por tudo que é feio,
Por tudo que é fraco.
Por tudo que morremos num ato de amor,
Por toda alma derramada num jato de gozo,
Pelas lágrimas ácidas e pelas frestas por onde a luz se esgueira.
Por todo poema estendido até o fim,
Por todo poema sem fim,
Por tudo que se transforme em poesia,
Pela morte que sorrirá,
E em nome do sorriso que morre.
Tito de Andréa