sábado, janeiro 09, 2010

Poema-biografia-para-nunca

Há terra firme onde piso,
Apesar da dureza da chuva
E do firme olhar do elefante devorado.

Há essa terra firme e intransponível
Onde pás e unhas não penetram
E homens são enganosamente acorrentados.
Não há coração.

Em vão brotam azeitonas e leite
Mel para poucos
É preciso fumaça e ratos,
É odor aprazível ao Senhor,

E em vão clamo seus nomes santos,
E encontro apenas som e impacto dentro dos pactos.

Apenas essa terra firme e terrível
Com cheiros guardados de gaveta
- Fumaça.

Piso, além das nuvens e ossos rijos, essa terra seca e metálica
Onde a sede e o sedento se humilham
- Mais, eu disse.

Estou pedindo mais e dando nomes aos números impares
Amontoando cadáveres significativos e não é hora.

Não é chegada a hora de alimentar lobos e de dar de comer às feras,
Não é vindo o tempo cantar.

Foi-me prometido mais além dessa dança da chuva que não danço e desses cantos em tempos de riso,
Foi-me prometido mais além dessa firmeza e dessas paredes de sol,
Foi-me prometido mais além do gosto de fumo e da vergonha de criança sem pai.
Foi-me prometido mais além do azedume e da ausência abandonada e sempre imediatamente aqui.

A mim prometeram algo além de um azul solitário e uma terra-fumaça firme.

Algo além de uma escrita de pontes e de cidades superpovoadas e chamados e quereres raramente mútuos.
Algo além de um segredo declarado e uma bandeira-mácula para identificar o sangue.

E ainda além de um sangue baleado de ácido e carne.
Um sangue ruim de um ancestral amaldiçoado,
Um sangue menos, um sangue também, um sangue eu.
Um sangue só.
A mim foi prometido algo mais que uma missa-música-réquiem para os vivos.
Algo mais forte que um caroço de montanha,
Algo mais distante, mas não de mim.

Algo que...
Sempre que...

Mas caminho e lavro os vermes da terra com esporos de fungos verdes.

Pois não é mais firme que eu a terra que piso com o corpo-fumaça que apraz ao Senhor.
E afunda em mim a terra como se fosse eu a água.
E penetra em mim o arado da lavoura
E em mim, a quem tanto foi prometido; em mim são plantadas as sementes que não germinarão.
Pois é densa e subnutrida a terra-eu que prometeram.

É fria e caustica e há pedras ainda mais densas e frias e sangues carnosos baleados de ácido sorridente e cujo odor, às narinas do Senhor, é ainda mais aprazível e delas se compadece, pois, em Sua justiça, vê que são boas.

Não em mim, o pedregoso conjunto de carne e sanguíneo de promessas por cumprir.
Sempre à espera de algo além.

Além do cardume que vence a correnteza da montanha para fecundar a lama.
Além do girino transpondo a lama para ser sapo numa terra salgada,
Além dos ursos canibais comendo seus filhos e irmãos através da fome,
Além do homem lavrando a terra com sementes que não nascerão nunca.

Além do monte e do morto e da lentidão e da desordem.

Além do sangue carnoso.

A mim foi prometido algo além de ir seguindo adiante (nem sempre) lavrando vermes, afogando a terra para afagar as pedras que agradam, mais que eu, ao Senhor.

A mim foi prometido o destino de ter todas as promessas por cumprir.

Tito de Andréa

segunda-feira, janeiro 04, 2010

Lamento

Sobre meu destino discutem deuses minúsculos
Que de forma alguma merecem adoração
Cumprem seus papéis e eu
Cumpro o meu.

Com certeza venho de uma longa linhagem de um povo antiquíssimo
Daqueles que costumam habitar planícies
E, acima de todas as outras coisas,
Aprenderam a temer o lobo e a floresta.

Minha pele, na parte de dentro,
Está povoada de inscrições,
Num alfabeto antigo e milenar
Cujos sábios já estão cegos e de tato amofinado.

Há, no clã de que venho,
Grande sentimento de derrota,
Joelhos que pesam
E mãos que se repuxam de anzóis.

Costumávamos, em tempos bons,
Cobrir-nos de cinzas e danças para a chuva,
Mas hoje eu,
Apenas estou apto aos atos fúnebres.

Nasci sob os desígnios de um mau signo,
Com luas proscritas a reger meu céu.
Gritos na parte de fora dos ouvidos
Chamados e dores tumulares.

Além da certeza da orfandade cativa,
O sentimento de um pólo negativo no peito,
De ser o próprio pai e avô
Do próprio desespero de si.

Sabendo do fundo dos fundos,
Que se é o próprio povo,
Que em si começa e terminam as necessidades da tribo
O clã.

Ser-se só solidão
E viver sendo o próprio útero
Carregando
A luz do próprio aborto.

Tito de Andréa