sexta-feira, maio 25, 2007

Viventre

De meu ventre ganhei um inimigo, em minhas entranhas nutri um parasita pulsante que se alimentou de minha vida de dentro para fora e fez crescer minha barriga, seios, rosto e pernas.

Por meses tive em mim as dores da criação, o peso nas costas, os chutes por dentro. Agüentei em mim mesma as dores nos pés e seios inchados. Dói-me de vida, porque a vida que em mim crescia não era eu.
Não era eu aquela câncer vivo que se multiplicava e definia uma forma, ainda tinha cauda, mas já era odioso. Ainda tinha guelras e membrana, era só o querer-ser de algo que seria. Era só fragilidade morta. Um monte de células nutrindo um monte menor. Líquidos, cheiros e vapores. Vida por vida.
Não me pertencia a morte que eu gerava, não me pertenciam seus olhos de mamífero noturno que me enxergava por dentro e ouvia meus pensamentos, dormia enquanto eu girava insone na cama. Odiava-o. Feto indecente.

Ganhei-o como o ganharia qualquer outra. Casei-me com um homem mais velho. Amo-o assim como ele me ama. E como é justo e natural, ele colocou sua semente em mim. Vivemos juntos agora e somos em dois apenas um. Enxergo nele minha vida e ele a enxerga em mim, mas sinto náuseas e enjôos ao lembrar da criança atada ao meu ventre por um fio de carne se revirando. Vomito ainda como vomitava, nunca desejei comer nada, como minha mãe disse que seria. Ao contrário disso eu parei de comer e perdi peso e disseram-me que morreríamos eu e o feto. Cedi e me alimentei, não por amor; medo.

Foram milhares os nove meses que se passaram para que me livrasse do fardo formado em mim. Nove meses de puro suor e tristeza. Queria uma faca longa e fina para perfurar meu ventre e lacerar sua pele fetal. Queria um veneno quente para derreter os meus órgãos por dentro e que ele nadasse até a morte por dentro de todo meu corpo. Queria a tudo, menos a ele. E ele chutava ao ouvir a voz do pai. E sorria ao ouvir minhas lágrimas.

Foram eternos os minutos do parto e finalmente compreendi porque o chamam assim. Não eram o bebê partindo de mim e sim minha alma e corpo sendo partidos para sempre.
Humilhei-me diante do médico e de todos.
Ali, seminua, aberta e sangrando eu chorei. Chorei e ainda lembro dos sorrisos de todos.

- Vê? Como são belas as lágrimas de amor?

Minhas lágrimas eram tudo; amor? Nunca.

O menino, pois era um menino o parasita canceroso que alimentei dentro de mim, mamava quatro ou cinco vezes ao dia e junto com o leite sugava minha alma, e eu chorava as lágrimas que podia. Sempre confundidas. Quentes e salgadas.
Mamou em meus peitos até ontem.
Hoje cansada e esgotada de peitos feridos e alma acabada eu o afoguei no banheiro.
Finalmente depois de tanto tempo pude sorrir e sorri ao ver suas pernas propositalmente pequenas e delicadas, para enganar a todos de sua natureza de demônio, se debatendo.
Afoguei aquele que me matava por dentro e depois por fora.
E agora diante de mim só vejo liberdade e leveza.
É com essa leveza que digo adeus e salto.

Tito de Andréa.

segunda-feira, maio 14, 2007

Réquiem

Não sou amor.
Antes disso
Sou todo feito de anti-luz.

Não sou leveza
Antes de sê-la
Sou todo mármore fúnebre.

Não sou dia
Antes de sê-lo
Sou todo cemitérios, ébrios coveiros.

Não sou estrela
Antes de sê-la
Sou todo pedra escura, um mausoléu para a vida.

Não sou sonho,
Antes de sê-lo
Sou todo noite fria, tempestade de pó.

Não sou ternura
Antes de sê-la
Sou uma tartaruga lodosa, pântano e mangue.

Não sou amor,
Antes de sê-lo
Sou cadavérico, magro e doente,

Sou só cegueira, visão sangrada,
Sou só vilania, carne e pecado,
Sou só a visão
Da vida que vivia e que a terra comeu.


Tito de Andréa

sábado, maio 05, 2007

O Enforcado

I - condenação

- Mil anos sobre a torre para teu corpo.
- Dois mil para os teus e aqueles que te amam.
- Vinte mil para teu Deus.
- A forca para teu fim.

Fala o júri.

- Mil anos apodrecendo para teu inferno
- Dois mil para os teus e aqueles que te amam.
- Vinte mil para teu Deus.

Cativo encarcerado conduzido frio e lento ao monte.
Chorou sangue e mel.

- Porque você foi menino e homem, e agora é tua hora de não ser.
- Porque comeu, respirou e amou, e é chegada a hora não mais fazê-lo.
- Porque batemos nosso martelo e teu corpo há de pender.

Dirigido vendado - claro - até sua cela, onde poderá arranhar paredes e murmurar fielmente.
Onde poderá perder os dentes e morder os pulsos.
Onde poderá esperar pela corda e pelo laço.
E terá a língua queimada e a carne amolecida.

- Espinhos para um rei.

- Pensa que é Cristo, herege?
- Tirem dele as armas. Mas tratem-lhe as feridas.

- Tratem-lhe as feridas com ervas mortas e alcóol puro.
- Tratem-lhe a pele que é como trapo vivo.
- Curem-no.
- Pois não o lançaremos vil à boca do peixe.
- Ao monstro apenas o melhor.

II - crime.

Pois cometeu o vil pecado.
E há de penar e pagar com sangue.
E há de chorar e moer os músculos.
E há de ser e ver ser.
Vencido enfim;
Entregue.

Pois fez tua casa entre as serpentes.
E entre serpentes criou tua cria.
Forjou, em metal escuro, tua alma.

Trabalhou e viveu e, para ti, não há mais espaço sob o céu.
Tampouco debaixo da terra.

Pois acreditou e profanou verdades.
E já é chegado o tempo em que veremos teu crime estampado em teus olhos de inocente acuado.

Pois é chegado o tempo de te fazer correr de porta em porta em busca de salvação.

Oferecer-te-ão veneno e mágoa.
Mas apenas nós temos tua vida em mãos.
E é à forca, que se dirige teu destino.

Chora enforcado, é chegada tua hora.

III - A via crucis.

Anda arrastando teu corpo, porque teu corpo é tudo que te resta e logo irá desfazer-se dele.

Anda e segue a voz de teu pastor, ovelha, segue-me até o monte onde sacrificar-te-ei diante do Senhor.

Torce a língua e enrijece o pescoço.
Não olha para o céu porque ele não te pertence.
Apenas olha para o chão, cai e ele te segurará.
Cai quantas vezes quiser, cair será teu legado.

Caminha, enforcado, é finito teu tempo.
Caminha, enforcado, é decidido teu destino.
Caminha, enforcado, costumava ser, logo não mais.

Anda arrastando tua pedra imensa e cava dentro dela com uma colher para fazer teu último refúgio.
Cava a pedra com a colher e cria na pequena montanha que amarraram a ti uma caverna para teus filhos.
Cava, enforcado, é pouco teu tempo.

IV - O lamento.

Pois eu, réu culpado e convicto, pequei.
Perdoa-me padre, para que eu vá em paz.
Deixa-me ir em paz padre, porque nem sei o que fiz.
Deixa-me livre padre, porque a forca é minha amante e flerta comigo à noite.
Perdoa-me padre. Nem que a penitencia seja infinda, nem que seja a perdição de mim, deixa-me crer perdoado e perdoado serei.
Olha para mim, padre, sou finito e meu fim vem vindo.
Dá-me teu perdão padre, e Ele dar-te-á ouvidos.

Eu não sabia o que fazia, padre.
Eu não amo a forca e para mim ela é como mulher indesejada;
Infecta e rabugenta.
Dá-me outro fim, padre.
Mas não me deixa desamparado.
Padre, segura minha mão enquanto meu corpo pender.
Padre, segura minha mão enquanto minha alma queimar.

Padre, perdoa-me, porque eu pequei e nem sei qual foi meu pecado.

- Vai meu filho, vai em paz, porque tua alma não estará.

E em verdade vos digo: hoje mesmo ao anoitecer estará colhendo grãos para o jantar do diabo.

V - O pender.

Sobe o corpo vivo para descer já sem vida.
Sobe a alma condenada para descer pronta e sedenta por punição.

Sobe condenado, e morre feliz.

Vai diante dele seu carrasco e amigo sedutor.
De cabelos cobreados e pele castanha.
De olhos vivos e coloridos.
Lábios rosados e voz de serpente.

Assim belo e jovial vai o carrasco diante do enforcado.

Assim sobe o carrasco o monte diante do réu.

Assim amarra ao pescoço do réu a corda, o carrasco.

- Tuas últimas palavras serão ditas por terceiros.
- Teus últimos atos agidos por outros.
- Teu corpo foi condenado e tua alma logo o será.

- Mil anos para ti, dois mil para os teus e os que te amam.
- Para teu Deus vinte mil anos de lamúria.

Morre contigo teu pecado.

Apenas torça o corpo, agonize a pare.

Pende o corpo.

Direita e esquerda até parar no centro.

O horror nos olhos daquele que olhou nos olhos da vida e disse adeus.

- Limpem o corpo e as lágrimas do rosto e preparem o funeral.
- Hoje há dança e alegria no céu.

Tito de Andréa

quarta-feira, maio 02, 2007

Chão de Estrelas

Degrau sobre degrau ascendo ao palco iluminado por velas e em cada um arde meu corpo vívido e incandescente.
Abrem-se as cortinas de minha pele e mostro meu pulsante coração ao público que vejo tremer lentamente sob meus pés.
Abro minha pele, e meu sangue cria seu rio eterno envolvendo a todos no novo milagre. Minha criação. Meu gênese. Assistam maravilhados.
Assim nasceu Deus.

Não temos divindades o suficiente.

Degrau sobre degrau ascendo ao palco já preparado para receber a última encarnação do executor.
Minha cruz feita de carne abraça-me e me leva enquanto caio cinqüenta e nove vezes pela minha nova e final via crucis.

Eu renovo meus votos para com a humanidade.
Eu quebro minhas pernas e como meus espinhos.
Eu reforço meu amor.
Eu clamo mais alto e mais ardentemente.
Eu choro por minhas dores diante das suas.
Abro teu sorriso com meus dedos.
Eu sou o dono de tuas cordas, abram caminho para que eu passe.

Não temos peso o suficiente.
Não temos terra o suficiente.
Não temos ardor, clamor nem dores.
Não temos sangue o suficiente.
Quebre os ossos com os dentes e quebre as asas com as mãos.

Eu me travisto de sol e de herói.
Sou prometeu vestido de águia.
Sou o bico que bica meu fígado e sou a montanha acorrentada às costas do Titã.

Tudo eu fui e guardei em mim.

Tudo eu sou e rasteja dentro de mim.

Não temos infecções o suficiente.

Guardem para mim, Ícaro, em suas asas de fogo.
Guardem para mim o Cristo em suas feridas de ouro.
Guardem para mim o outro.
O próximo.

Não temos platéia o suficiente.

Ascendo degrau a degrau para um novo ruído, um som, um guincho de morcego.
Um grito finito.
Fim em si.

Não temos morte o suficiente.

Guardem para mim o assento da frente.

Serei o primeiro a aplaudir meu espetáculo.
Pois sou vários em mim.
E serei mais em mil.
E mil em milhões.

Guardem para mim o final mais terrível.
O mais trágico e memorável.
O mais abrangente e pleno.
Para mim apenas aquilo que ninguém deseja.
Abraço-o e dirijo-me ao destino.

Em teus medos, anseios e pesares estarei.

- E eu o vi viver.

Tito de Andréa.