terça-feira, agosto 19, 2008

Deserto

Estou cá.
Estrangeiro em minha própria casa, encolhido, encurvado, assustado e escurecido. Estrangeiro mercante que negocia em outra língua e em outra moeda, pobre e pacato, aprisionado dentro de sua linguagem estranha à terra em que chegou. Assim, estou cá.

Estou cá, feio, sujo, oleoso, suado e dolorido. De olhos secos, sem lágrimas nem pra impedir as pálpebras de arranharem os olhos quando eu pisco; nem pra me dar um ar de sentimental e, com isso, me conquistar umas migalhas de amor desgastado e vendido.
- Uma esmola, por caridade, um resto de amor e ouvidos para um desajustado.

Assim. Patético e parido estou cá. Risível de forma tamanha que, até eu, rasgo a boca a rir de mim e de meus ranhosos lamaçais de caridade piedosa. Assim, migalhento e redundante, eu rolo e deito diante de minha cruz de reclamações e berro que não.
- N Ã O.

Assim. Como quem levanta sem mais tempo pra si, como quem sabe o que deve saber e sabe que deve saber que sabe. Assim, como quem repete que não há mais tempo para autopiedade de bêbado, viro uma e mais uma e mais uma e mais uma e mais uma.
- Não tem tempo. Não tem tempo. Não tem tempo. Não tem tempo. Não tem.

Mas não era isso que eu queria te falar, não.
Não era isso que eu tinha hoje pra te dar. Então se sente aqui do meu lado, e abre as orelhas, olhos e narinas.
Que o que eu tinha pra te contar eu comecei a contar antes de você chegar, e você pegou a história pela metade...
Que o que eu queria te dar de presente eu dei pro vento.
Que o que você perdeu você acha ali, debaixo daquele pano, debaixo daquele pano ali.

Mas não era isso que eu queria te falar não.
Então espere e receberás.

O que eu queria te dizer é o que eu venho dizendo sempre.
Que sempre é uma palavra que me perseguiu eternamente.
Que eterno só o meu peso.
E a leve, leve, mais que leve, perda que eu embalo.

Que eu fico aqui, sabendo que entôo um antimantra da salvação, que debulho o terço dos leprosos e a novena dos epiléticos.
Que eu fico aqui. Mesmo sabendo que a fumaça que exala meu insenso é fétida e desagrada ao meu Deus vermelho.
E o desagrado é a minha oferenda.
- Aprende a ser Eu.

Que o que eu queria te dizer eu disse pra todo mundo.
E que pra você só sobrou minha lamuriosa procissão.
Minha romaria dos cansados, com velas velhas e música escura.
Então me abrace e me carregue. Me leva nos braços, pelos barrancos e abraços.

E que eu fico aqui mesmo, mesmo sem voz e lágrima.
Que eu montei num camelo sedento e me conduzi feito mercador árabe até as muralhas de meu lar. E estendi o deserto até minha morada e agora me perdi aqui.
Aqui sou um estranho.

E era isso que eu tinha pra te dizer.
E era isso que eu tinha pra depositar no altar que você construiu aí.
E era isso que eu tinha.
E agora não mais tenho.

E agora apenas
Estou cá.

Tito de Andréa

terça-feira, agosto 12, 2008

Caravana

O poema é um animal morto
O poema é um camelo com sede
O poema vagou por meses no deserto quente
Carregando nas costas os mantimentos da caravana

O poema é uma carcaça exposta ao sol
O poema é uma fria e feliz oferenda aos comensais
O poema deitou-se para dormir
E não se levantou jamais

O poema é um esquálido esqueleto
O poema é uma árida e infértil paisagem
O poema se esparrama em forma de deserto esperante
E anseia pela chuva

O poema é um resto desbotado
O poema é um preguiçoso predador acuado
O poema é uma serpente suicida, que morde a si mesma
E morre poema, a perda.

quarta-feira, agosto 06, 2008

Micropoemas e outras faces subcutaneas

Amarelo

Aqui,
Homens vermelhos
Amam suas correntes.

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Autodesconhecimento

A larva
Que acreditava se tornar borboleta,
Transformou-se
Em mosca.

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Ovo

Aqui dentro
A dança
da gema
infecunda

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Dominós

"Vida que consiste em não ferir"*
Ou ferir
Apenas a si.

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Autodesconstrução

Pela beleza
Que há
Nas ruínas.

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Ferir

Porque facas
Mesmo cegas
Cegam.

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Idéias

Assombram
A noite
Como rostos
Nas cortinas.

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Ratos

Ossos e olhos
Dentes.
Ratos.

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Lobo da Estepe.

Não me assuto.
Não falta muito tempo
Para os cinqüenta.

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Contas

Caem do colar
Teus olhares
De contas

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Amor


mor
te

Amo
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Praia

Nas marés
Da vívida praia
Um deserto
Todo de vento.

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Azul e cinza

Porque eu quase...
Sempre.

* trecho da música "Dominoes" de Syd Barrett.

Todos por:
Tito de Andréa

sábado, agosto 02, 2008

O Barqueiro e o barcante.

Os dez anos foram os piores.
Creio que os fazem assim a fim de desencorajar uma revoltosa volta. Dez anos, na companhia daquele terrível demônio, me foram mais que suficientes para abandonar qualquer desejo de vê-lo uma vez mais. Na verdade, à primeira vista abandonei qualquer desejo de liberdade.

“Caronte” disseram-me que deveria chamá-lo e Caronte o chamei. Paguei-lhe com uma rica moeda e seu penitente sorriso foi-me dado pela primeira vez. Meu primeiro castigo, meu primeiro pesar, minha primeira dor. Seu raquítico e mesquinho sorriso.
Parecia satisfeito e pleno. Não só com seu pagamento - não isso era o menor - mas com meu martírio.

Deixem-me, por favor, ser mais claro.
Morri.
De minha vida-de-vivo pouco trago em lembranças. Apenas sei que fui luxurioso, avaro, e sanguinolentamente irado. Fui desregradamente vivo e merecidamente punido, dirão aqueles que se salvaram. Mas eles não sabem da penitencia desumana de passar os primeiros dez anos na barca.
Dez miseráveis anos. Dez, contados segundo-a-segundo a partir do primeiro sorriso.
E, meus aflitos e amados irmãos, eu vos asseguro: nunca parou de sorrir, o maldito.

Era feio e belo ao mesmo tempo. Enigmático. Andrógino, de feições finas e magras. Sem pêlos, pálido e esverdeado. Olhos fundos e sem cor. Pele suada, sempre úmida, como a de um sapo.
Suas roupas, ironicamente, me lembravam a dos padres franciscanos. Marrom, de tecido rude e feio. Sujo.
Seus dentes eram amarelos e sua boca, ressecada e encurvada, ria sem mostrar os dentes – mostrar os dentes era para os momentos especiais, para ele, e era sempre pior -, mas sempre numa respiração pesada e ruidosa. Como um eterno asmático feliz.

Feliz! Era isso que ele era. Feliz.
Nunca em minha vida havia eu presenciado tamanha demonstração de contentamento e felicidade. Real felicidade. E isso tornava tudo pior. Apenas me afligia e me dilacerava a alma.

Alma? Há alma na barca? Há alma que resista diante da vista do barqueiro? Diante de sua sombra? Há alma que possa sobreviver ao percurso do rio? Não. Aqui não há alma. Aqui há qualquer coisa além.
Porque não é possível que o humano Fio Divino seja mantido aqui ou na barca.

Alma não. Aqui resta só o corpo. Só a força do corpo, que, sem alma, é muito mais forte. Muito além do homem.
O Divino que conheci, que pude ser foi esse Ser sem alma.
De corpo e corpo eu te digo: Não.
Não renunciaria a esse conhecimento.
Mas apenas a ele me apego. E dele apenas faço minha recompensa.
Mas ela não me paga aqueles dez anos contados-a-dedo. Não me paga nem o primeiro sorriso. Nem o primeiro calafrio
Talvez tenha sido melhor não ter sabido de nada. Abandonar.
Talvez...

Lembro-me, também, que ao longo do rio fui procurando pelo animal canino de três cabeças. Isso foi no quinto ano. Antes disso eu ia olhando a água escura e profunda do Aqueronte. E uma vez – no quinto dia do terceiro ano – cedi a tentação de tocar a água, enfiar a minha mão nela. Mas, um pavoroso peixe surgiu e quase arrancou minha mão.
O maldito deliciou-se numa tossida e babada protogargalhada. Odiei-me naquele momento e imaginei como seria atirar-me ao rio, ao peixe, e terminar meu tormento.
Mas não. Não. Ele adoraria. Riria como nunca. E isso seria o pior.

Fiquei a observar as águas ainda por mais dois anos. Notei que o peixe nos acompanhava. Às vezes era possível ver suas verdes escamas brilhando sob a água.
No quinto ano, como dizia, abandonei o peixe para preocupar-me com algo mais claro, mais belo, algo que fosse encher-me de terror e reverencia. Algo que valesse ver.
Cérbero, o poderoso cão infernal de três cabeças.

E eu mantinha os olhos abertos por dias sem piscar. Apenas para não perder o prazer de ver, pela primeira vez seu majestoso corpo.
E a busca e a espera e a apreensão quase me faziam esquecer a presença raquítica e o hálito gelado do barqueiro, que não parava de sorrir.

E foram mais três anos de espera. Até o terceiro sorriso-com-dentes do barqueiro.
E foi a primeira vez que ouvi sua voz.
E era seca e corroída. Corrosivamente direta, como se viesse para a alma, mas como só encontrava carne e mais carne então, cortava e sangrava tudo que podia.
E ele disse:
- Está procurando pelo cão?

Fiquei em choque. Paralisado. Tremia e morria a cada segundo. Escutar aquela voz. Aquela voz maldita, escutar aquilo foi meu castigo maior.
Não respondi. Depois de seis dias pude balançar a cabeça na esperança de que ele não falasse mais. Mas ele riu e continuou.
- Não há cão. Não há cão de três cabeças. Não há nem portão nem diabo. Só há inferno.

Tremi, mastiguei a língua, tentei arrancar as orelhas e os cabelos e ele ria, Ria e gritava e se batia.
E foi pavorosamente lento e doloroso o resto do tempo que passei na barca.

Ah, mas foi o deleite e a paz quando desci.
E ninguém mais saberá o prazer que é livrar-se das frias circundancias do barqueiro.
Era feia, fria e sinistra a terra e havia escuridão e lágrimas, não me entendam mal.
Mas era melhor que o céu em si o prazer de livração.
Era e É o terror e a dor, aqui. Mas nada pior que lá.
E foi vitória para minhas derrotas quando vi os olhos descoloridos do barqueiro ficando vagos e perdendo seu foco. Como alguém que perde algo muito amado e percebe que não o verá jamais.
E eu venci.

E, agora posso perceber, que esses primeiros dez anos de travessia não foram para me impedir de voltar, mas para fazer-me amar e cuidar de minha terra.
Voltar a barca seria o inferno real.
Aqui sim.

Feliz e calmo tormento.


Tito de Andréa